A pessoa como Sujeito Moral

A pessoa como Sujeito Moral

Na introdução ao estudo da Filosofia, apresentamos algumas das disciplinas da Filosofia. Uma delas é a Ética. Aí vimos que a Ética é a disciplina filosófica que aborda a acção moral, investiga a prática humana, procurando compreender a qualidade que permite que esta possa ser vista como moralmente boa ou não. Vimos ainda que a Moral é da ordem dos factos, é o conjunto de princípios, de normas e de valores existentes numa determinada sociedade e aceites pelos membros dessa mesma sociedade como válidos.

Cada cultura tem os seus princípios, as suas normas e os seus valores, embora possam ser muitas vezes comuns a diversas sociedades.

Nesta Unidade Didáctica introduzimos um tema de particular importância, que aborda o conceito «Pessoa» como categoria ética fundamental. O que é que faz de nós pessoas, ou seja, o que é que nos distingue dos outros seres que não são pessoas? Eis aqui a razão pela qual temos de começar por tentar responder questão «Quem sou eu?».

O conceito de «Pessoa»

A noção de pessoa é a expressão do mais elevado conceito que o Homem tem de si próprio e nela se conjugam algumas notas constitutivas…
In: Do Vivido ao Pensado – Introdução à Filosofia 10º Ano; Porto Editora,1995.

A noção de pessoa aparece em oposição de individuo, quer dizer, individuo biológico. Mas o que é um indivíduo biológico? Individuo significa, antes de tudo, consistência, isto é, coesão, indivisibilidade interna, unidade. Esta unidade não significa simplicidade, mas sim uma composição de partes. Enquanto tal, esta unidade é totalidade: diferenciada, estruturada e centrada.

É uma totalidade diferenciada, uma vez que o próprio conceito de «todo» implica uma multiplicidade qualitativa de partes que compõem o todo. Neste sentido, o ser vivo, enquanto individuo, é uma totalidade diferenciada.

É uma totalidade estruturada porquanto os diversos órgãos e as funções que eles exercem não são independentes uns dos outros como se de estratos que se sobrepõem se tratasse. Os diferentes órgãos e as suas funções constituem uma estrutura, isto é, são interdependentes; só são aquilo que são devido à relação de mútua dependência.

É uma totalidade centrada porque um individuo biológico enquanto tal, tem um centro a partir do qual se realiza essa totalidade. O ser vivo, no seu agir, refere-se a si mesmo, a algo interior. Na Vida vegetativa, por exemplo, a planta já realiza um processo biológico interno de crescimento e de conservação.

Em relação ao animal, isto verifica-se de um modo mais significativo e a um nível superior. O animal não só tem percepções sensíveis, como também pode conservá-las e reagir de acordo com uma sensibilidade instintiva. A este centro poder-se-ia chamar consciência ou memoria sensível.

Quem sou eu?

No Homem, as coisas passam-se de maneira muito diversa, o que o torna completamente diferente dos outros indivíduos biológicos e o coloca num outro nível em relação a eles. A centralidade no Homem não é somente consciência ou memoria sensível, mas, sobretudo, reflexão, pois o Homem não sé sabe, mas sabe que sabe. Então, quando a consciência é reflexão, aí está-se no mundo do espírito e da pessoa.

Esta totalidade centrada que faz com que a pessoa transcenda o mero nível biológico é que lhe confere uma certa autonomia em relação à sua co-existência com o meio ambiente e uma abertura em relação à sua co-existência com os outros.

O que é pessoa? O conceito «Pessoa» pode ser abordado a partir de duas perspectivas: uma parte da problemática clássica; outra, mais descritiva, toma em conta as filosofias mais recentes.

Na perspectiva da Filosofia clássica far-se-á referência somente a alguns filósofos. Para o filósofo romano Cícero, por exemplo, «Pessoa é o sujeito de direitos e deveres». Boécio, porém, entende Pessoa como uma «substância individual de natureza racional». Na mesma linha de pensamento de outro romano Boécio, S. Tomás de Aquino, já na Idade Média, defende que Pessoa é um «subsistente de natureza racional».

Estes últimos dois filósofos destacam dois elementos definidores de Pessoa. Segundo eles, começa por ser individuo subsistente, coeso, uno, total e de natureza racional. Quer isto dizer que o individuo, enquanto totalidade centrada, encontra a sua mais alta realização na Pessoa, onde esta «centralidade» significa reflexão completa: saber que sabe, consciência de ter consciência. Esta racionalidade pressupõe na Pessoa uma «dimensão espiritual». A razão é o fundamento da liberdade e esta o fundamento último de outras características e realizações da pessoa. É neste sentido que a ideia de Cícero não deve ser posta de lado, uma vez que a sua definição de Pessoa quer destacar os carácteres de relação e de inter-relação como constitutivos dinâmicos da pessoa humana.

Os filósofos da modernidade orientaram-se por outras direcções definitórias de Pessoa, das quais se têm destacado três:
  • A psicológica, que, tomando como referência o filósofo Descartes, toma a consciência como a característica definitória da Pessoa.
  • A ética, que, segundo Immanuel Kant, destaca a liberdade como o constitutivo do ser Pessoa.
  • A social, que com o Personalismo e, particularmente, com Martin Buber, sublinha na definição de Pessoa a relação desta com o(s) outro(s).
Estes dados, tanto da Filosofia clássica como da moderna, não devem ser vistos de forma isolada, como se eles se excluíssem mutuamente. Na definição de Pessoa, todos estes elementos se completam.

A consciência

Consciência é o conhecimento (scientia) que acompanha as nossas vivências (cum); a consciência apreende três sentidos: biológico, psicológico e moral.
Neste caso, interessa-nos o sentido moral, em que a consciência é vista como o juiz do valor moral das nossas actividades: avaliando os nossos actos, atribuindo-lhes mérito ou demérito; julgando-os sob o ponto de vista do bem ou do mal e indicando o dever a seguir.
Em sentido restrito, pode significar o conhecimento. concomitante e cumulativo dos próprios actos ou estados internos no preciso momento em que são vividos ou experimentados.

A consciência começa por conhecer o espírito e os seus fenómenos e, depois, estrutura-os e organiza-os num conjunto global, capaz de responder à situação existente. É através da consciência que conhecemos toda a realidade humana e extra-humana.

Fig. 2: A obra o pensador, de Augusto Rodin, representa a Reflexão e a Consciência.


consciência é um elemento essencial dos fenómenos psíquicos. No nosso íntimo, umas multidões de fenómenos interpenetram-se. A consciência é como um rio que desliza sem parar, e seria ridículo ver num rio não mais do que um composto de gotas de água. Esta afirmação baseia-se em Heráclito que dizia: «Ninguém pode banhar-se duas vezes nas mesmas águas do rio».

Além da mobilidade e da continuidade da corrente da consciência, há nela um poder de selecção e de síntese. A corrente de consciência apresenta uma finalidade e um objectivo, os quais se revelam na formação da percepção. Por meio desta, o individuo conhece a realidade e se adapta a ela, nomeadamente na formação da personalidade e sempre que surja uma situação nova a que precisa de se adaptar.

A selecção e a síntese são importantes na formação da personalidade, que é a síntese dos fenómenos psíquicos, seleccionados pela consciência e por ela referidos ao Eu. A personalidade exige uma selecção de fenómenos, pois nem todos os que afectam o Eu servem: escolhem-se uns e inibem-se outros.

Apos a selecção, vem a ligação ao Eu dos fenómenos seleccionados e, assim, se constitui a personalidade.

Acção humana e valores

O Homem é essencialmente um ser dinâmico, activo que transforma de uma forma consciente e continua as suas condições concretas. É por isso, que a sua acção consiste numa confrontação sistemática em busca de uma orientação que vai dar sentido à sua acção e ao seu agir para melhorar a sua Vida.

A questão crucial que se deve ter em conta é a resposta às seguintes perguntas: O que é uma acção? O que é agir?

Pode-se falar de acção quando se realiza um simples movimento corporal? Deslocar-se de um lugar para outro sem um destino premeditado, pode mesma se considerar acção? Como se diferencia acção dos movimentos de outros seres vivos?

Acção é uma operação própria de um agente que se opõe a uma inércia ou a passividade, acção pode designar, em particular, os actos voluntários ou involuntários, implica a intervenção de uma consciência própria, dai que a mesma se implica com a moral e pode ser boa ou má. Aristóteles percebeu que a acção humana tem como finalidade última a conquista do bem e da felicidade.

A acção humana pode-se resumir em actos voluntários ou involuntários. Consideramos um acto de voluntário quando consciente e premeditado e orientado para uma finalidade concreta. O acto involuntário ocorre na circunstância de pressão pelas condições concretas de momento ou que não passe pelo controle da consciência.

A divisão de valores e caracterização de valores não é uniforme, ou seja, depende fundamentalmente do sistema de valores vigente numa determinada sociedade. Os valores podem ser morais - aqueles que se relacionam com um conjunto de normas e regras comportamentais vigentes e aceites como padrão da sociedade. Cada organização social, desportiva, religiosa ou económica define os seus valores, os quais orientam a filosofia do funcionamento e relacionamento dos sujeitos concernidos. Podem ser também de carácter local - que dizem respeito a um grupo cultural.

Os valores de âmbito moral são tratados na ética e Deontologia. Os valores, neste âmbito, orientam para uma boa convivência social, aspectos ligados a solidariedade, ajuda mútua, apoio aos desfavorecidos entre outros. Outra grande categoria de valores é a de categoria material e artística. Os valores são por natureza relativos. Não existe um consenso do que se toma como valor padrão universal, é por isso que se fala da relatividade de valores, e de contra valores. Por exemplo, a determinação de uma obra de arte, de uma atitude, do modo de estar com os outros, a atitude perante o trabalho e perante a sociedade varia de pessoa para pessoa. No entanto, não existem valores que sejam mais altos que outros valores, apenas valores diferentes.

Há valores que são no mínimo um padrão para uma sociedade de pluralidade de ideias, como a nossa, por exemplo: responsabilidade, integridade, lealdade, honestidade, sigilo, competência, prudência, coragem, critica, perseverança, compreensão, tolerância, dinamismo, flexibilidade, humildade, imparcialidade e optimismo. Estes são valores que garantem estabilidade social e política de qualquer sociedade.

Para o caso de alunos podem ser vividos e aplicados em vários momentos da actividade do dia a dia, no trabalho em grupo, na limpeza da escola, do bairro, na participação nos processos eleitorais etc.

De onde vem a ideia do «bem» para o meu íntimo?

Consciência moral é a função que nos permite distinguir o bem do mal; orienta os nossos actos e julga estes segundo o seu valor. A consciência moral é a primeira condição de toda a moralidade. É por ela que a Vida moral começa. A sua presença distingue o Homem do animal; o seu desenvolvimento distingue a criança do adulto.

Todos os Homens e todos os povos sentem esta consciência moral que os acusa ou, pelo contrário, louva. A presença da consciência moral, no Homem, implica a existência de um conjunto complexo de elementos racionais (juízos e noções), afectivos (sentimentos) e activos (intenções, desejos e vontade).

Fig. 3: Momentos finais da Vida de Sócrates na cela recebendo a taça de cicuta.


Os juízos precedem e seguem o acto moral. Antes do acto dizem-nos se ele é bom ou mau, se deve ser praticado ou evitado. Depois do acto, aprovam ou reprovam, conforme este é julgado bom ou mau.

Estes juízos subentendem, por sua vez, um conjunto de noções, tais como: bem e mal, coragem e cobardia, dever e direito, responsabilidade e sanção, etc.

Para Sócrates, a ciência ou conhecimento é que traduz a virtude, ao passo que o vicio seria a privação da ciência, isto é, a ignorância. Isto equivale a dizer que a riqueza, o poder, a fama, a saúde, a beleza e semelhantes não podem, pela sua natureza, ser considerados bens em si mesmos; enquanto dirigidos pela ignorância, revelam-se males maiores que os seus contrários, e levam o Homem a cometer o mal.

Assim, sendo governados pelo juízo e pela ciência ou conhecimento são bens maiores. Em si mesmos, nem uns nem outros têm valor.
Por conseguinte, se para Sócrates a virtude é ciência e o vicio é a ignorância, então pode dizer-se que ninguém peca voluntariamente, isto é, quem faz o mal fá-lo por ignorância do bem. Estas posições, que resumem o intelectualismo socrático, reduzem o bem e o mal a uma questão de conhecimento, de modo que considera impossível conhecer o bem e não praticá-lo.

Esta maneira de pensar influenciou todo o pensamento dos gregos a ponto de se tornar quase o denominador comum de todos os sistemas. Sócrates chegou a notar que o Homem, pela sua natureza, procura sempre o seu próprio bem e que, quando faz o mal, na realidade não o faz porque pretenda o mal, mas porque dai espera extrair algum bem. Dizer que o mal é involuntário significa que o Homem é vítima da «ignorância».

Sócrates tem razão quando diz que o conhecimento é condição necessária para fazer o bem, porque se não conhecemos o bem não podemos fazê-lo; mas engana-se ao considerar que, além de condição necessária é também condição suficiente. Ora, para fazer o bem é também necessário o concurso da «vontade». Este conceito, a que os filósofos gregos não deram muita consideração, só se iria tornar essencial e central na ética dos cristãos.

A relação com os outros e com o meio ambiente

O valor da pessoa, sob o ponto de vista ético emerge, sobretudo, nas relações interpessoais. É na sua relação com os outros que a pessoa encontra os vínculos éticos mais profundos e empenhativos. Estes vínculos podem expressar-se de diversas maneiras e a diversos níveis:
a)     Como respeito pela pessoa do outro, tal como se apresenta no encontro interpessoal. A pessoa é única, original e insubstituível. É um fim em si mesma e nunca pode ser instrumentalizada e reduzida a um simples meio seja do que for.
b)     Como promoção da pessoa, como vimos atrás, não basta afirmar a pessoa, é necessário promovê-la. A relação interpessoal não deve ser contemplação, mas energia realizadora. Não interessa só que o outro viva; interessa também como vive. A relação interpessoal é, até certo ponto, uma relação criadora. Não basta «não odiar, não matar»; é necessário amar.
c)     A promoção reveste-se, na maioria dos casos, da forma de libertação. Na relação interpessoal, o outro, muitas vezes, está em estado de alienação: é o pobre, o oprimido, o explorado, o esfomeado, o sem pátria...

É necessário agir face a estas situações, sob o risco de o significado ético da relação pessoal ficar reduzido a um moralismo formal. A relação interpessoal é activa, criadora e libertadora.

O valor ético da pessoa é o fundamento de uma ética social e é também o critério para decidirmos sobre os «deveres» que a consciência moral nos impõe.

A relação com o meio ambiente é uma outra necessidade que garante o equilíbrio no esquema de todas as relações sociais. Isto é assim porque não se pode falar do Homem sem mundo, como não se pode falar do mundo sem Homem; não só o mundo cultural mas nem sequer o mundo natural pode ser olhado e separado do Homem. O que de facto existe é um Homem no mundo e um mundo para o Homem.

O individualismo é um sistema de costumes, de sentimentos, de ideias e de instituições que o individuo organiza partindo de atitudes de isolamento e defesa. Ele foi a ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX (...). Assim, a primeira preocupação do individualismo é centrar o individuo sobre si mesmo, e a primeira preocupação do personalismo é descentrá-lo para o Colocar nas largas perspectivas abertas pela pessoa. Estas cedo se afirmaram. O primeiro movimento que na primeira infância o ser humano revela é o movimento para outrem; a criança de 6 a 12 meses, saindo da Vida vegetativa, descobre-se nos outros, aprende nas atitudes que a visão dos outros lhe ensina. Sé mais tarde, å roda do terceiro ano, virá a primeira vaga do egocentrismo reflexo. Quando pensamos na pessoa somos influenciados pela imagem da silhueta. Colocamo-nos, então, diante da pessoa como diante do objecto. Mas o meu corpo é também esse olhar vazio perscrutando o mundo, é também eu próprio, esquecido. Pela experiência anterior, a pessoa surge-nos como uma presença voltada para o mundo e para as pessoas, sem limites, misturada com elas numa perspectiva de universalidade.
Adaptado do Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia; volume 2.

Aspectos da ética individual

Os aspectos da ética individual resumem-se nas formas fundamentais da co-existência com os outros.

Nesta secção, abordamos formas de co-existência na perspectiva antropológica e não na perspectiva sociológica. Por isso é que ao abordarmos, aqui, o tema sobre os aspectos da ética individual, não o fazemos considerando o ser humano como um «ser isolado» e auto-suficiente, mas como «consciência fechada» porque desta maneira seria difícil ou mesmo impossível falar da sua relação com o outro.
Apresentamos, em seguida, algumas das forças de co-existência com os outros.

O amor
O amor implica, em primeiro lugar, a afirmação do outro como sujeito, isto é, como pessoa. Não só afirmar, mas afirmar para promover: afirmação e promoção do outro enquanto outro na sua originalidade e unicidade. Este amor de afirmação é necessariamente incondicionado (ama-se o que o outro é e não o que ele tem); é desinteressado (o amor não procura vantagens pessoais, egoístas, o que seria instrumentalizar a pessoa); finalmente, o amor é fidelidade criadora que procura realizar e promover o outro de acordo com o seu projecto existencial próprio e original. É evidente que esta fidelidade se deve realizar dentro do quadro de valores.

O amor como promoção
De todas as intenções que se escondem por detrás duma mesma palavra, é preciso escolher a que for autêntica e possa dar ideia das anomalias, das modificações e das próprias perversões dessa mesma palavra. Ora, o elemento que responde a esta exigência e que deve entrar, em primeiro lugar, na definição que procuramos é o seguinte: o amor é uma vontade de promoção. O «mim» que ama quer, antes de mais, a existência do «ti»; e quer, além disso, desenvolvimento autónomo desse «ti»; e quer, por outro lado, que o desenvolvimento autónomo seja, se possível, harmonioso, em relação ao valor previsto por «mim» para «ti». Qualquer outra atitude é uma paragem tímida no limiar do tempo, ou então, uma complacência egoísta no reflexo dum espelho. Não há amor i propriamente dito se não formos dois; e se o «mim» não tentar sair em direcção ao outro, a fim de postular, título; tão real quanto possível, não como objecto de espetáculo, mas sim como uma existência interior e como uma subjectividade perfeita.
M. Nédoncelle; Para uma Filosofia da Pessoa; Ed. Morais; Lisboa; 1961.

A indiferença
Este é o relacionamento mais comum em sociedade. Tematizado por autores personalistas e existencialistas esta forma de relacionamento tem, fundamentalmente, duas características: o «outro» é, em primeiro lugar, a função que desempenha sendo a pessoa substituída pelo funcionário; a segunda característica é o tratamento com o outro na terceira pessoa: o outro não é um «tu» mas um «ele». Este «ele» implica uma certa objetivação da pessoa e a redução da subjectividade soma da qualidade e função. Por outro lado, este «ele» significa uma «ausência» em relação a mim. Não uma ausência espacial como é óbvio, mas uma ausência «afectiva». Se, enquanto funcionário, o outro pode muito bem ser substituído por uma máquina, então «ele» é como se não existisse. Estamos no reino da fria burocracia e tecnocracia.

O Ódio
É uma outra forma de relacionamento. Enquanto o amor, como vimos, é a afirmação e a promoção do outro, o Ódio é a negação e a rejeição do outro. Neste caso, talvez, não se deva usar o termo «objetivação». Se o outro ficasse «objetivado», deixaria de poder ser odiado. Um objecto não se odeia nem se ama. O Ódio é a rejeição da subjectividade de outro e a sua «apropriação». Enquanto na indiferença, o outro é «como se não existisse», o Ódio exige, por assim dizer, existência do outro, não para o promover, mas para o rejeitar.
Como dissemos, estamos a analisar as formas de relacionamento a nível antropológico. A nível social, a sua relação pode tomar outros contornos, sobretudo de conflitos. Estes manifestar-se-iam pelo desejo, nalguns casos, de desaparecimento físico, do outro.

Os sentimentos
O que são os sentimentos? Podemos definir os sentimentos como reacções agradáveis ou desagradáveis, de relativa duração e, geralmente, com repercussões fisiológicas discretas e suaves.

Os sentimentos caracterizam-se pela presença de adesões intelectuais ou representativas (imagens, ideias, representações) e a quase ausência de repercussões fisiológicas.
Dai poder-se definir os sentimentos como reacções que não se excedem nem pela violência nem pela desorganização ou desadaptação da pessoa.

Tendo em conta o número das nossas tendências, a multiplicidade de objectos com que cada um se pode relacionar e a diversidade de situações em que nos podemos encontrar, facilmente poderemos imaginar a qualidade de sentimentos a que podemos estar sujeitos e a grande instabilidade dos mesmos.

A importância dos sentimentos para a saúde mental do Homem pode ser entendida com base no seguinte: uma Vida com sentimentos maus é, forçosamente, uma Vida infeliz. Alguns dos sentimentos inadaptados que têm sido objecto de estudo da Psicologia são: inferioridade, inadaptação, culpabilidade mórbida, recusa e não-aceitação ou espírito de contradição, insegurança, ressentimento, hostilidade, ansiedade e frustração.

Para o controlo e orientação dos nossos sentimentos, devemos ter em conta os seguintes princípios:
  • a)    A facilidade com que os sentimentos, deixados a si mesmos, se transformam em emoções e paixões com os respectivos desajustamentos.
  • b)    Os sentimentos positivos, optimistas e altruístas devem predominar sobre os sentimentos negativos, pessimistas e egoístas. Os primeiros dilatam a alma, activam o bom funcionamento de todo o organismo, enquanto os segundos atrofiam, oprimem, «azedam» o sangue.
  • c)    Para controlar os sentimentos é necessário dominar os actos e as ideias, pois as ideias precedem e promovem os actos; os actos e as ideias modificam os sentimentos.
  • d)    Devemos agir como se tivéssemos os sentimentos bons que desejamos ter. Por exemplo: se desejamos amar alguém com quem não simpatizamos, comecemos por ver nele o lado bom, relacionamo-nos com ele, como se, de facto, fosse nosso amigo... e, pouco a pouco, amá-lo-emos.
Outros factores psíquicos ligados aos sentimentos são as emoções, paixões e humores.
Apesar da grande importância que têm no desenvolvimento dos sentimentos não lhes dedicaremos muita atenção, senão uma simples informação:

·       As emoções são respostas psicofísicas intensas, ordinariamente repentinas e imprevistas, ligadas a acontecimentos que alteram bruscamente o equilíbrio do comportamento humano e, por isso, marcadas por modificações psicológicas normalmente fortes.
Existem diferentes espécies de emoções, sendo de destacar as seguintes dimensões: rapidez ou intensidade e nível de excitação, agradabilidade ou desagradibilidade, atracção ou rejeição.

·       As paixões são estados afectivos intensos, duradouros e polarizadores da Vida psíquica da pessoa.
A paixão é uma inclinação dominante que tende a tornar-se exclusiva, podendo chegar a dirigir todo o nosso comportamento, comandar os nossos juízos de valor, impedir o exercício imparcial do nosso raciocínio, absorver, por assim dizer, a inteligência, a imaginação, o corarão e a vontade.

A paixão tem um carácter absorvente ou centralizador, imperioso, estável, intenso e, por vezes, violento. Reveste-se, frequentemente, de um certo carácter de fatalidade, fazendo perder o controlo ou o domínio pessoal.

·       Os humores são estados ou disposições de animo difusos, passageiros ou persistentes, sem um objecto nem um estímulo preciso. Predispõem, inconscientemente, as pessoas para um determinado comportamento emocional, inclinando-as para a exaltação ou a depressão, a calma ou a tensão, a alegria ou a tristeza, a euforia ou a melancolia. São uma espécie de «música de fundo» permanente da Vida afectiva.

Não existe uma linha rigorosa que separa os sentimentos dos humores. Contudo, os humores são mais persistentes, penetram com frequência mais fortemente na personalidade, invadem de forma mais global a Vida psíquica.

Aspectos da ética social

A ética social é um subcapítulo da ética normativa que, procura fundamentar as normas e objectivos da interacção entre individuo e grupo ou grupos entre si. Dessa relação resultam vários outros tipos de ética que se enquadram nesta. Entre eles há a salientar a ética ambiental que se ocupa da relação do Homem com a Natureza e o meio em que ele vive (problemas relativos à poluição do meio ambiente); a bioética que levanta problemas morais que advém do desenvolvimento da Biologia (transplante de órgãos, etc.); a ética medicinal que levanta os problemas morais na medicina (questionando se se deve informar ou não um doente que irá morrer dentro de dias ou se se deve omitir a verdade); e, finalmente, a ética científica ou técnica que se debruça sobre os aspectos da responsabilização dos cientistas sobre as inovações cientificas. Porém, neste capítulo, tratar-se-ão questões como a liberdade, a responsabilidade e a justiça na perspectiva personalista, a virtude, o mérito e a sanção na visão marxista e existencialista.

A liberdade
A relação entre a liberdade e a moral é intrínseca, o que faz com que a liberdade seja o fundamento do agir moral. A liberdade é, segundo Kant, a razão de ser da lei moral e, simultaneamente, a afirmação do sujeito que age como pessoa.

A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ele pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinam, assim como necessidade natural a propriedade da causalidade de todos os seres irracionais de ser em determinados à actividade pela influência de causas estranhas.

A definição da liberdade que acabamos de propor é negativa e, portanto, infecunda para conhecer a sua essência; mas dela decorre um conceito positivo que é mais rico e fecundo. Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis, segundo as quais à causa liga-se um efeito, assim a liberdade, se bem que não seja uma propriedade de vontade segundo leis naturais, não é desprovida de lei.

A necessidade natural era uma heteronomia das causas eficientes, pois todo o efeito era sé possível segundo a lei de que alguma outra coisa determinasse a causalidade; que uma outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, isto é, a propriedade da vontade de ser lei para si mesma? Mas a proposição, de que a vontade é, em todas as acções, uma lei para si mesma, caracteriza apenas o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja aquela que possa ter-se a si mesma por objectivo como lei universal. Isto, porém, é precisamente a forma do imperativo categórico e o princípio da moralidade; assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e mesma coisa.»

Immanuel Kant; Fundamentos da Metafisica dos Costumes; Edições 70; Lisboa; 1995

Etimologicamente, a palavra «liberdade» significa isenção de qualquer coacção ou negação da determinação para uma coisa. Em suma, pode-se entender como a faculdade de fazer ou deixar de fazer uma coisa.

Vista do lado do sujeito, tem sido entendida como a possibilidade de autodeterminação e de escolha, acto voluntário, espontaneidade, indeterminação, ausência de interferência, libertação de impedimento, realização de necessidades, direcção prática para uma meta, propriedade de todos ou alguns actos psicológicos, ideal de maturidade, autonomia de sapiência e ética, razão de ser da própria moralidade.

Existem vários tipos de liberdade: liberdade física, civil, política, de religião, de imprensa, de reunião, de expressão de pensamento, de ensino, etc.

Aqui iremos retratar a liberdade no seu sentido lato. O conceito «liberdade» foi objecto da Filosofia desde os primórdios até aos nossos dias. O primeiro pensador a debruçar-se sobre a liberdade foi Sócrates. Este pensador era da opinião de que o Homem é livre quando se verifica o domínio da própria racionalidade em relação à própria animalidade.
No fim da idade moderna, aparece-nos um grande pensador, Kant, cujo pensamento nos é apresentado nos textos de apoio mais adiante.

Por seu lado, Jean-Paul Sartre, filósofo francês do séc. XX, identifica o Homem com a liberdade. Afirma que o Homem não está de modo algum sujeito ao determinismo; a sua Vida não é como a da planta cujo futuro já está escrito na semente.

A liberdade defendida por Sartre é uma liberdade absoluta e total. Portanto, o Homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si mesmo e, no entanto, é livre porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo aquilo que fazem os pensadores marxistas, por seu lado, são da opinião de que o Homem só é livre com o fim da alienação. Para estes, a condição fundamental para a liberdade é o fim da exploração do Homem pelo Homem.

Queremos a liberdade pela liberdade e através de cada circunstância particular. E ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros e que a liberdade dos outros depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade como definição do Homem não depende de outrem, mas, uma vez que existe a ligação de um compromisso, sou obrigado a querer ao mesmo tempo a minha liberdade e a liberdade dos outros; sé posso tomar a minha liberdade como um fim, se tomo igualmente a dos outros como um fim.
Jean-Paulo Sartre; Existencialismo é um Humanismo; Col. Divulgação e Ensaio; s.d.

A responsabilidade
Etimologicamente, a palavra «responsabilidade» vem do latim respondere, que significa «comprometer-se» (sponder) perante alguém em retorno (re). É a virtude através da qual o agente moral deve responder pelos seus actos, isto é, reconhecê-los como seus e suportar as suas consequências. O uso deste termo em Filosofia é relativamente recente, e foi no século XX que ganhou ressonância. A responsabilidade pressupõe três condições fundamentais:
  • Conhecimento – o agente deve ter conhecimento dos seus actos e das suas consequências. Se o individuo actua por ignorância a sua responsabilidade será atenuada.
  • Liberdade – só somos responsáveis pelos actos que são verdadeiramente nossos, e é a liberdade que dá ao Homem pleno domínio dos seus actos e o torna susceptível de valorização.
  • Intenção – a responsabilidade depende da intenção com que se decide a realização do acto.
A responsabilidade subdivide-se em dois tipos:
  • a)    Responsabilidade fundamental ou transcendental, que é aquela que o Homem tem por ser Homem, enquanto Homem. É a responsabilidade perante a consciência, os outros e a sociedade.
  • b)    Responsabilidade categorial, que equivale as diversas obrigações e deveres de cada um. É subjectiva ou pessoal, cada sujeito agente é responsável pelos actos que são verdadeiramente seus porque livremente praticados.
Friedrich Nietzsche é da opinião de que só é responsável aquele que pode responder por si e perante si mesmo, enquanto Jean-Paul Sartre faz cada um responsável não apenas pela sua estrita individualidade, mas, também, pela humanidade em geral. Sartre defende que quando o Homem escolhe, escolhe-se a si e, simultaneamente, escolhe todos os Homens. Nada é bom para nos se não for bom para todos.

O mérito
O mérito é a aquisição de valor, em sequência do bem que se pratica. O seu oposto é o demérito, que é a perda de valor, em virtude dos factos cometidos. O mérito depende (em absoluto) do valor do próprio acto, e também (em relativo) das condições em que o acto é realizado, especialmente de dificuldade e de intenção. Por exemplo: um rico que, ao encontrar um mendigo, lhe dá a quantia de 200,00 meticais para ganhar a simpatia das pessoas em redor é menos meritório que um pobre que despende o valor de 5,00 meticais mas o faz por verdadeira solidariedade.

A virtude
A virtude é um valor moral adquirido por esforço voluntário, isto é, uma força para fazer o bem e que se adquire através de exercícios bons. O estudo da virtude foi realizado já por Sócrates e Platão. Platão tratou dela em vários diálogos, entre os quais Ménon, Protágoras e República, apontando quatro tipos de virtudes:
  • A prudência
  • A fortaleza
  • A temperança
  • A justiça
Ao procurar compreender as virtudes, a razão defronta-se com não poucas nem fáceis interrogações: Existem realmente virtudes? Em que consistem? Que valor atribuir-lhes para a existência humana?

Com a sua Vida repartida e derramada por inumeráveis actos pontuais e transitórios, não pode o Homem fugir unidade dessa Vida da unidade de si mesmo? A virtude personaliza ou tecnifica? Não custa entender a razão desta questão, tendo em conta a generalizada identificação da virtude com o bom hábito. Aqui resulta claramente a dificuldade de reconhecer um valor moral à virtude assim concebida como hábito operativo bom.

A sanção
A sanção é o prémio ou castigo infligidos pelo cumprimento ou violação da lei. Sancionar um acto é sublinhar o seu valor, quer reconhecendo-o como bom, por meio de elogios e recompensas, quer tomando-o como mau, através de censuras e castigos. A sanção não é somente castigo como muitos entendem, mas também um prémio. As sanções dividem-se em terrenas e sobrenaturais.

As sanções sobrenaturais compreendem:
  • Sanções de consciência – consideram-se assim certos sentimentos, com os quais nos sentimos elevados (satisfação, paz interior) ou deprimidos (inquietação, remorso), consoante os nossos actos são bons ou maus.
  • Sanções de opinião pública — sanciona as acções humanas, quer quando louva os bons, quer quando reprova os maus.
  • Sanções naturais – são as consequências que resultam para nos da Vida que levamos. Os actos imorais traduzem-se, geralmente, em decadência pessoal (intelectual e física) ao passo que a saúde pode ser o fruto de uma Vida moral pura.
  • As Sanções civis – são as que a sociedade aplica, por órgãos apropriados, aos que transgridem leis e regulamentos.
Sanções sobrenaturais estão relacionadas com as religiões e, em todos os tempos, e incluem a crença (explicita ou implícita) num juízo final como recompensa última dos bons e castigo dos maus. Esta noção de sanções sobrenaturais corresponde a um objectivo moral positivo: evitar que, perante as insuficiências inevitáveis (em erros e omissões) das sanções terrenas, o Homem possa cultivar a ideia moralmente corrupta de que pode haver crime sem castigo ou pode haver virtude sem esperança de recompensa.

Bibliografia
CHAMBISSE, Ernesto Daniel; COSSA, José Francisco. Fil11 - Filosofia 11ª Classe. 2ª Edição. Texto Editores, Maputo, 2017.

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