Aspectos da Bioética

Aspectos da Bioética

O termo Bioética foi proposto, pela primeira vez, em 1971, por um médico cancerólogo de nome Van Rensslaer Potter. É de recente criação e é usado ora com significado amplo sugerido pela etimologia (áreas das questões éticas relacionadas com a Vida), ora em sentido mais restrito, como o das aplicações da Biologia e da Medicina Vida. Em relação ao último sentido, alguns autores, sobretudo europeus, usam o termo Ética Biomédica.

Os avanços cientifico-técnicos desde há uns decénios, muito especialmente no domínio da genética e da fitologia, têm ampliado notavelmente o campo da Bioética levando-a, actualmente, a investigar áreas complexas e vitais. Interessa-nos ver, sob o ponto de vista histórico, quais são os antecedentes que contribuíram para a criação da nova Bioética.

Antecedentes históricos

Apesar da sua origem recente, a Bioética tem raízes que são tão antigas como a Medicina e remontam a Hipócrates. Mas, até meados do século XX, a maioria dos problemas morais que se punham à Biomedicina podiam ser resolvidos por uma deontologia profissional e uma ética de inspiração hipocrática, apoiada apenas em algumas virtudes básicas como a compaixão e o desinteresse, assim como o princípio de que o médico deve agir sempre e só em benefício do paciente.

Três factos históricos, que veremos em seguida podem ser mencionados como tendo desencadeado a criação ou o surgimento de uma nova Bioética.

Alguns abusos na experimentação dos seres humanos

Depois da II Guerra Mundial, vieram ao conhecimento público a realização de experiências efectuadas em seres humanos sem o seu consentimento livre e esclarecido. Entre elas destacamos as experiências em seres humanos efectuadas pelos médicos nazis em hospitais de alienados e em campos de concentração. A consciência colectiva reagiu vigorosamente. O Tribunal de Nuremberga, que julgou os crimes da Guerra, redigiu, em 1947, um código que reconheceu a dignidade de toda a pessoa humana e prescreveu que nenhuma experiência fosse realizada em seres humanos sem o seu consentimento livre e esclarecido. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) consagrou este mesmo princípio.

Mesmo assim, outros abusos continuaram a ser praticados. Selecionamos apenas três exemplos:
  • No hospital de Willowbrook, em Nova lorque, de 1956 a 1971, realizou-se uma investigação com 700 a 800 crianças deficientes mentais, inoculando-lhes o vírus da hepatite com o objectivo de buscar uma terapia imunizante.
  • No hospital Jewish Chronic Disease, também em Nova lorque investigadores injectaram sob a pele de doentes idosos células cancerosas sem lhes fornecer qualquer informação ou pedir consentimento.
  • Em Tuskegee, no Estado de Alabama, 431 negros pobres foram privados de cuidados contra a sífilis, entre 1932 e 1972, para permitir o estudo do curso natural da doença.
Ao serem conhecidos, estes escândalos desencadearam uma forte reacção e a consciência viva de que a prática da investigação clínica em seres humanos tem de ficar sujeita a critérios rigorosos que respeitem os direitos e dignidade de toda a pessoa humana. A Bioética é criada precisamente para investigar princípios que permitem que as decisões sobre a realização de experiências em seres humanos sejam fundamentadas eticamente.

O surgir das novas tecnologias

Outro antecedente importante do surgimento da nova Bioética foi o rápido desenvolvimento das tecnologias médicas e terapêuticas, inovando mais nos últimos 25 anos do que nos anteriores 25 séculos dando origem a situações inéditas de decisão moral.

Entre as várias situações, podemos mencionar as tecnologias de cuidados intensivos, que permitem manter vivo um recém-nascido com poucas possibilidades de sobrevivência sem os cuidados intensivos ou prolongar a Vida de um doente terminal. A questão colocada muitas vezes é: quando é que é ético administrar ou interromper estes cuidados intensivos?
Em outros tempos, na ausência de alternativas técnicas o problema não se punha; a morte inevitável encarregava-se de resolver o problema. Mas hoje, a existência das técnicas de ventilação e circulação artificiais coloca escolhas éticas difíceis. O mesmo se pode dizer de tecnologias que permitem o transplante de órgãos, o suprimento da infertilidade, o diagnóstico pré-natal, a terapia genética, o aborto, entre outros. medida que a ciência transfere para as mãos do Homem poderes antes reservados ä fatalidade da Natureza, no que respeita ao nascer, viver e morrer, pergunta-se até que ponto estamos autorizados a exercer esses poderes e em que medida aquilo que é tecnicamente aplausível será eticamente aceitável.

A partir do nascimento da primeira criança por fertilização in vitro em 1978 e dos progressos das técnicas de reprodução assistida, levantaram-se inúmeros problemas éticos para os quais não há ainda hoje, soluções unânimes e exigem-se discussões mais profundas. A Bioética torna-se, assim, necessária para reflectir sobre estes conflitos éticos.

A percepção da insuficiência dos referenciais ético-tradicionais

A incapacidade de referenciais ético-tradicionais para encontrar resposta as novas situações criaram um ambiente de inquietação que também contribuiu para a criação da nova bioética.

O código hipocrático, baseado numa atitude paternalista do médico em relação ao doente, já não era suficiente numa época em que se começavam a acentuar os direitos dos pacientes: direito à autonomia, à verdade, informação, ao consentimento informado. A ética filosófica especulativa e a teologia moral baseadas no conceito da lei moral eram incapazes de encontrar respostas a novas e prementes questões que se punham. Assim, a Bioética surge como um novo paradigma.

Objecto e o objectivo da Bioética

Como referimos acima, a Bioética surgiu há cerca de três décadas, como um conjunto de preocupações éticas levantadas por cientistas. Impulsionada pela consideração dos problemas morais decorrentes das novas tecnologias médicas, a Bioética estendeu também a preocupação a problemas da Biologia, da interdependência dos seres vivos numa visão a longo prazo, assim como da sobrevivência do Homem no nosso planeta. Ela passou a caracterizar-se por uma dimensão social, pela sua natureza transdisciplinar e pluralista, pela abertura à participação do público e pelo assessoramento de políticas nacionais num esforço de harmonização internacional.

Perante os novos poderes que a ciência dá ao Homem sobre a Vida e sobre si próprio, é importante que ele segure as rédeas do progresso e tome as decisões éticas que lhe tornem possível plasmar um futuro autenticamente humano. E, assim, podemos definir a Bioética como o saber transdisciplinar que planeia as atitudes que a humanidade deve tomar ao interferir com o nascer, o morrer, a qualidade de Vida e a interdependência de todos os seres vivos. A Bioética é a decisão da sociedade sobre as tecnologias que lhe convém.

Questões morais relativos ao aborto e a eutanásia

Estes dois aspectos tornam-se semelhantes por interromper a Vida de um ser. No âmbito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito a Vida é o único inalienável e inerente ao Homem, é o direito universal inquestionável para todo o ser humano, independentemente da sua origem étnica, cor, local de nascimento, grau de instrução, etc. Moralmente questiona-se a legitimidade de aborto (interrupção de gravidez, ou seja, de uma Vida já formada ainda que em fase da gestação). Questiona-se, também, sobre a possibilidade e legitimidade de uma pessoa que concebe, mas desprovido de condições para um devido amparo ao novo ser, ou seja, a sustentabilidade de uma gravidez não desejada ou concebida não em comum acordo.

Quanto a eutanásia, ela define-se como procedimento que antecipa a morte de um doente incurável, para lhe evitar o prolongamento do sofrimento e da dor, ou seja, uma morte sem dor. Sob o ponto de vista ético questiona-se a legitimidade e moralidade deste acto. Se o médico ao notar que o seu paciente já não tem nenhuma hipótese de sobreviver ou de continuar com a Vida pode recorrer a eutanásia para reduzir o sofrimento do seu paciente ou não? Ou se o próprio doente pode solicitar a autoridade médica para lhe interromper a Vida através da eutanásia ou deixá-lo sofrer até as últimas consequências, pelo facto de que ninguém tem direito de tirar a Vida a uma outra pessoa nem a si próprio, atendendo e considerado que a Vida e um direito natural.

O outro ponto polémico no capítulo da ética e da moral é a venda de órgãos humanos. A venda de órgãos humanos pode ocorrer em comum acordo recorrendo ao conhecimento clínico através do transplante de coração ou de um outro órgão interno e pode, por outro lado, ocorrer a venda de órgãos humanos para fins obscuros como enriquecimento ilícito. Para qualquer um dos casos questiona-se a unicidade do ser humano. Outro caso semelhante a este e o do aluguer de barriga ou barriga de aluguer que acontece em alguns países. Aí o dilema está na paternidade do novo ser. O uso do corpo humano para o tráfico de drogas é um outro dilema no campo da ética. Aqui questiona-se sobre a legitimidade disto independentemente da finalidade. A transfusão do sangue e do plasma é um outro debate que interessa bastante ao campo da ética e questiona-se a moralidade do acto por tratar-se de junção de dois seres separados por fronteira natural. Existem em Moçambique seitas religiosas que se recusam por completo a esta prática, alegadamente em defesa da unicidade do ser humano.

Mas na verdade a doação de sangue é um acto de solidariedade, pois, dar sangue é salvar uma Vida.

Qual a razão da emergência da Bioética?

Ocorre que nos últimos anos a Medicina, a Biologia e a Engenharia Genética alcançaram extraordinários avanços:

multiplicaram-se os transplantes, experiências com animais, inseminações artificiais, bem como, nascimentos humanos fora do corpo humano (fertilização in vitro).

Alterou-se igualmente a legislação, adoptada por vários países, concernente ao aborto ou eutanásia, numa procura pela orientação não sé de cientistas dedicados a experiências genéticas, como também, opinião pública e aos legisladores em geral. Aos cientistas, a legislação alerta para os limites da sua investigação e aos legisladores para que façam as leis seguindo princípios éticos aceitáveis.

São cinco, os princípios bioéticos:

1. Princípio da autonomia: requer do profissional o respeito à vontade, o respeito à crença, o respeito aos valores morais do paciente, reconhecendo-lhe o domínio sobre a própria Vida e o respeito à sua intimidade. Este princípio gera diversas discussões sobre os limites morais da eutanásia, suicídio assistido, aborto, etc. Exige também definições como respeito å autonomia quando a capacidade de decisão do sujeito está comprometida – são as pessoas ou grupos considerados vulneráveis. Isto ocorre em populações e comunidades especiais como menores de idade, indígenas, débeis mentais, pacientes com dor, militares, etc. Com relação à ética em pesquisa, gera o princípio do «termo de consentimento livre e esclarecido» a ser feito pelo pesquisador e preenchido pelos sujeitos da pesquisa ou seus representantes legais sempre que a capacidade do sujeito (ou paciente) estiver comprometida.

2. Princípio da beneficência: assegura o bem-estar das pessoas, evitando danos e garante que sejam atendidos os seus interesses. Trata-se de um princípio indissociável ao da autonomia.

3. Princípio da não maleficência: assegura que sejam minorados ou evitados danos físicos aos sujeitos da pesquisa ou pacientes. Riscos da pesquisa são as possibilidades de danos de dimensão física, psíquica, moral' intelectual, social, cultural ou espiritual do ser humano em qualquer fase de uma pesquisa e dela decorrente. Dano associado ou decorrente da pesquisa é o agravo imediato ou tardio, ao individuo ou à coletividade, com nexo causal comprovado, directo ou indirecto, decorrente do estudo científico.

4. Princípio da justiça: exige equidade na distribuição de bens e benefícios em qualquer sector da ciência, como por exemplo: Medicina, Ciências da Saúde, Ciências da Vida, do meio ambiente, etc.

5. Princípio da proporcionalidade: procura o equilíbrio entre os riscos e benefícios, visando o menor mal e o major benefício às pessoas. Este princípio está intimamente relacionado com os riscos da pesquisa, os danos e o princípio da justiça.

Bioética e Direito, SP, Ed. Jurídica Brasileira - UNISUL

O Homem é livre ou não? ou em que situações concretas Eu sou livre ou não?

O Homem é livre ou não? Ou seja, em que situações concretas Eu sou livre ou não? «O Homem é livre ou não?» Esta pergunta espera um sim ou um não categóricos, absolutamente distintos. Uma resposta afirmativa parece a mais ansiada. Entretanto, ela dispensaria todo o nosso esforço de libertação. Mais do que isso, esta forma de colocar o problema impede a visão da complexidade real da condição humana. (...).

Os Homens não nascem livres, porque nascem como que presos dentro de condições biológicas, sociais e históricas concretas que eles próprios não escolheram. É dentro delas que decorre a sua Vida.

Por exemplo, não nascem livres de nascer onde nasceram (não escolheram o local), de nascer numa outra época diferente da sua, de nascer com uma cor da pele diferente daquela que possuem; não são livres de nascer vigorosos ou fracos, nem de pertencer ao sexo da sua preferência.

Escravos ou livres, nascem geneticamente codificados e programados para aprender, codificados para tirar partido da sua experiência, habilitados a não se satisfazerem com as condições que lhes são dadas. Por isso, em vez de um pensamento binário - o Homem é livre ou não? Pensamos e questionamo-nos sobre a infinidade de condições nas quais os homens vivem e das relações que eles estabelecem entre si; a questão abstracta e metafisica sobre a liberdade no singular, o problema é de «as liberdades» em que o Homem vive: politicas, económicas, sociais e religiosas, liberdade de imprensa e de edição, liberdade de expressão, liberdade de consciência, liberdade de associação, liberdade de comércio e de indústria.

Adaptado de L. l. Grateloup; Cours de Philosophie; Paris; Hachette; 1990.

Questões para a reflexão
1.     «O Homem é livre ou não?» ou «Em que situações concretas Eu sou livre ou não?»
  • a)    Qual é a situação do problema levantado pelo texto? Fundamente.
  • b)    Quais são as razões evocadas para se negar que o Homem nasce livre?
 2.     «Em vez de um pensamento binário - o Homem é livre ou não? - pensamos e questionamo-nos sobre a infinidade das condições nas quais os Homens vivem e das relações que eles estabelecem entre si».
  • Em que ponto a Constituição da República, em Moçambique, responde as preocupações do texto?

A liberdade como poder de agir ou não agir

«Um Homem que acaba de cair à água porque o piso sobre que caminhava cedeu, não teve liberdade alguma e não foi agente livre, porque ele preferia não cair.

Outro exemplo. Suponhamos que se leva um homem, enquanto está num sono profundo, para uma cama onde já se encontra uma pessoa que há muito não via (...) e que se fecha a porta à chave de tal maneira que não esteja em seu poder sair. Este homem, ao acordar, fica encantado por se encontrar com uma pessoa cuja companhia ele desejava tanto e com quem continua com prazer, gostando mais de estar ai com ela do que sair para ir algures. Pergunto se ele não continua voluntariamente nesse lugar? Penso que ninguém duvida disso. Entretanto, como este homem está fechado à chave, é evidente que ele não está em liberdade de não permanecer nesse quarto e de sair se quiser. Por conseguinte, a liberdade não é uma ideia que pertença à preferência que o nosso espírito dê a uma acção mais do que a outra, mas é livre a pessoa que tem o poder de agir ou de suspender o agir, segundo o qual o seu espírito se determina por uma ou outra dessas possibilidades.»

Adaptado de John Locke; Ensaio sobre o Entendimento Humano; Vol II; F. Gulbenkian; 2008.

Questões para a reflexão
  • 1.     Compare os dois primeiros exemplos referidos no texto e elabore um juízo pessoal do que seria, de facto, a liberdade para si.
  • 2.     Perante a última situação referida no texto, pode.se dizer que o homem agiu livremente? Justifique a resposta.
  • 3.     Recorrendo ao dicionário e a outros meios auxiliares, explique uma circunstância em que já se viu numa situação de agir livremente ou de ser impedido de o fazer.




Bibliografia
CHAMBISSE, Ernesto Daniel; COSSA, José Francisco. Fil11 - Filosofia 11ª Classe. 2ª Edição. Texto Editores, Maputo, 2017.

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