Tentativas de definição da Filosofia
Tentativas de definição da Filosofia
De uma maneira geral, a abordagem de qualquer ciência começa pela apresentação da sua definição, pela delimitação do seu objecto e pela indicação dos seus métodos específicos. Como será, então, em Filosofia? Qual é a definição de Filosofia?
O que a prática já nos demonstrou é que não se pode falar em Filosofia sem problemas por resolver. No entanto só tem problemas a resolver quem está em posse de uma razoável experiência de Vida. Assim, de entre os vários grandes dilemas que temos pela frente, o primeiro é constituído pela seguinte questão: o que é a Filosofia?
A pergunta colocada tem várias respostas, de acordo com cada filósofo, tal como nos apresenta o texto que se segue.
A Filosofia é um conhecimento, uma forma de saber que, como tal, tem uma esfera própria de competência, a respeito da qual procura adquirir informações válidas, precisas e ordenadas. Mas, enquanto é fácil dizer qual é a esfera de competência de várias ciências experimentais, o mesmo não se dá com a Filosofia. Sabemos, por exemplo, que a Botânica estuda as plantas, a Geografia os lugares, a História os factos, a Medicina as doenças, etc. Quanto å Filosofia, que coisa estuda ela?
No dizer dos filósofos, ela estuda todas as coisas. Aristóteles, que foi o primeiro a fazer uma pesquisa rigorosa; e sistemática em torno dessa disciplina, diz que a Filosofia «estuda as causas ultimas de todas as coisas»; Cícero define-a como «o estudo das causas humanas e divinas»; Descartes afirma que a Filosofia «ensina a raciocinar bem»; Hegel entende-a como «o saber absoluto»; para Whitehead, o papel da Filosofia é o de «fornecer uma explicação orgânica do universo». Poderíamos citar muitos outros fi16sofos que definem a Filosofia ora como o 4 estudo do valor do conhecimento, ora como a indagação do fim último do Homem, ora como o estudo da linguagem, do ser, da história, da arte, da cultura, da politica, etc.
Battista Mondin; Curso de Filosofia; Vol. I. São Paulo; 1990.
Como se explica que a definição da Filosofia tenha assim tantas respostas e todas elas polémicas?
Qual é a explicação para a falta de consenso entre os filósofos em relação definição da Filosofia?
O texto que se segue é deveras elucidativo quanto à dificuldade de se encontrar uma definição consensual da Filosofia, serve para ilustrar (e não para explicar as causas) quão controversa é a definição da Filosofia.
Será preciso, então, definir a Filosofia logo à partida, precisar que género de verdade se deve procurar numa obra filosófica, determinar que espécie de sentido convém dar a essa obra? (...) E, no entanto, nada seria mais perigoso do que formular, logo de início, uma tal definição, em nome da qual muitas questões seriam definitivamente escamoteadas. Nenhuma definição dessa espécie, tomada num sentido rigoroso, seria aprovada por todos os que, pelo menos provisoriamente, temos de designar por filósofos.
É, portanto, a partir de um sentimento confuso, e não duma ideia Clara do que será o nosso objecto, que somos obrigados a começar a investigação. E é pelo estudo dos filósofos, pela confrontação das suas afirmações, pelo esforço de procurar, através dos seus escritos, chegar ao que querem dizer, que esse sentimento original se há-de pouco a pouco precisar e dar lugar a uma ideia...
Alquié F., «La Signification de la Philosophie» in Antologia Filosófica;
Livros Horizonte; Lisboa; 1983, p. 19
A dificuldade com que nos deparamos ao tentar definir a Filosofia é também parcialmente explicada no texto que apresentamos em seguida, no qual se procura chegar ao significado da palavra «Filosofia» a partir da sua etimologia.
Filosofia é uma palavra de origem grega (philos = amigo; sophia = sabedoria) e no sentido estrito designa um tipo de especulação que teve origem e atingiu o apogeu entre os antigos gregos, e que teve continuidade com os povos culturalmente dominados por eles: grosso modo, os povos ocidentais. É claro que, actualmente, nada impede que em qualquer parte do mundo se possa fazer especulação moda grega», isto é, Filosofia.
Mas, se afirmarmos que esse tipo de especulação é diferente, que tem características próprias, quais são estas afinal? O que é, afinal, a Filosofia? Bem... se perguntarmos a dez físicos «o que é a Física», eles responderão, provavelmente, de maneira parecida. O mesmo se passará, provavelmente, se perguntarmos a dez químicos «o que é a Química». Mas, se perguntarmos a dez filósofos «o que é a Filosofia», ouso dizer que três ficarão em silêncio, três darão respostas pela tangente e as respostas dos outros quatro vão ser tão desencontradas que só mesmo outro filósofo pode entender que o silêncio de uns e as respostas dos outros são todas abordagens possíveis questão proposta.
Para quem ainda está fora da Filosofia, a coisa pode parecer confusa. Mas a razão da dificuldade é fácil de explicar: talvez seja possível dizer e entender o que é a Física, de fora da Física; e dizer e entender o que é a Química, de fora da Química. Mas, para dizer e entender o que é a Filosofia, é preciso já estar dentro dela. «O que é a Física» não é uma questão física, «o que é a Química» não é uma questão química, mas «o que é a Filosofia» já é uma questão filosófica — e talvez uma das características da questão filosófica seja o facto de as suas respostas, ou tentativas de resposta, jamais esgotarem a questão, que permanece assim com a sua força de questão, a convidar outras respostas e outras abordagens possíveis. (...) A Filosofia começa quando algo desperta a nossa admiração, espanta-nos, capta a nossa atenção (Que é isto? Por que é assim? Como é possível que seja assim?), interroga-nos insistentemente, exige uma explicação.
Espantar-se diante das coisas, interrogá-las, é próprio da condição humana. Qualquer cultura, por mais primitiva que seja, tem, desde sempre, o seu arsenal de respostas e explicações às questões que normalmente são postas.
Ora, uma das belezas que nos revela a análise etimológica da palavra Filosofia é a modéstia com que o filósofo se apresenta: ele não é um sábio, ele é «amante da sabedoria». A Filosofia não é tanto um saber como uma actividade: a da busca, a do cultivo do saber. O primeiro espanto talvez tenha sido involuntário; mas, quando se torna «amante da sabedoria», o filosofo é alguém que sabe manter viva a capacidade de se espantar. Lá mesmo, onde todo o mundo está instalado, o filósofo é aquele que chega e, com toda a espécie de perguntas engraçadas, dá uma sacudidela e faz ver que nada é obvio e que tudo é realmente de pasmar! Nada escapa ao seu questionamento: nem Deus, nem o Homem e as suas instituições, nem as ciências, os seus métodos e os seus resultados, nem os resultados do questionamento filosófico, nem o próprio direito do filósofo de questionar.
Filosofia é «saber de todas as coisas» e é saber critico. Nem ela própria pode escapar ao seu questionamento e sua critica.
Ora, numa sociedade em que as explicações estão todas prontas, onde as normas são aceites sem discussão, a tendência é estagnar. As alterações, inevitáveis em qualquer comunidade humana, ficam por conta de factores externos: mudanças climáticas, cataclismos, guerras, invasões... Mas, onde há questionamento de tudo, existe um princípio interno de transformação, e existe a permanente possibilidade de mudança.
É, por isso, que entre os dez filósofos, um certamente se insurgiria contra o seu colega engraçadinho e bradaria indignado: Alto lá! A Filosofia é o contrário disso, ela é justamente a ciência com que não é possível ao mundo permanecer tal e qual!
E basta entrar na Filosofia para entender que ele também tem razão.
Maria Iglésias; «Curso de Filosofia» in Introdução à Filosofia: Pensar e Saber – 10º ano.
Texto Editora; Lisboa; 3ª edição; 1995; p. 106
Pode-se, então, concluir que pela sua origem etimológica, a Filosofia é, a amizade pela sabedoria, não é a posse do saber mas a sua busca, a sua demanda. Assim sendo, o filósofo não é um sophos (sábio, perito) mas aquele que ama o saber, aquele que o procura.
O termo «Filosofia», ou mais precisamente o termo «filósofo», é atribuído a Pitágoras, filósofo e matemático grego do século VI a.C., que entendia que nenhum Homem se poderia considerar sábio (isso cabia apenas a Deus), ou seja, detentor do saber, mas apenas amigo do saber.
Da própria análise etimológica se conclui que a Filosofia não é algo dado mas antes algo que se procura. No próprio conceito está implícita uma atitude.
A este propósito escreve Karl Jaspers algumas considerações que podemos ler em seguida.
A palavra grega filósofo (philosophos) é formada em oposição a sophos, significa o que a ma o saber, em contraposição ao possuidor de conhecimentos, que designava por sábio. Este sentido da palavra mantém-se até hoje: é a demanda da verdade e não a sua posse que constitui a essência da Filosofia, muito embora tenha sido frequentemente traída pelo dogmatismo, isto é, por um saber expresso em dogmas definitivos, perfeitos e doutrinais. Filosofar significa «estar a caminho».
As interrogações são mais importantes do que as respostas e cada uma destas transforma-se em nova interrogação. (...) Estar em demanda de algo ou alcançar a serenidade e a plenitude de um instante não são definições da Filosofia. A Filosofia a nada se subordina ou se equipara.
Não deriva de algo diferente. Cada filosofia define-se a si própria pelo modo como se realiza. Para saber o que é Filosofia tem de se fazer uma tentativa. Só então a Filosofia será simultaneamente a marcha do pensamento vivo e a consciência desse pensamento (reflexão), isto é, o acto e o respectivo comentário. Só a partir da tentativa pessoal poderemos aperceber-nos do que se nos depara no mundo com o nome de Filosofia.
Karl Jaspers. Iniciação Filosófica. Guimarães Editores, Lisboa, 9ª edição, 1998; pp. 18-19.
Fig: Karl Jaspers (1883-1969). |
O pensamento de Jaspers, filósofo do século XX, prova-nos não só que a atitude filosófica de busca, como de permanente inquietação, se mantém como constante desde o século VI a.C. até aos nossos dias, como também que cada filósofo tem não apenas a sua própria concepção filosófica, mas, igualmente, a sua própria concepção do que é a Filosofia.
Daqui se pode inferir que a dificuldade de definir a Filosofia está precisamente no facto de não haver Filosofia, mas sim filosofias, como diria Sartre, pois cada filósofo tem a sua concepção filosófica e a sua própria concepção sobre o que é a Filosofia.
Nem todos os filósofos viveram na mesma época, razão pela qual têm motivações particulares diferentes e têm problemas diferentes por resolver. Por este motivo, a Filosofia depara-se com a dificuldade de dar a sua própria definição. Cada época tem os seus problemas e a Filosofia procura responder as perguntas do seu tempo, dai que tenhamos tentado pela via etimológica fazer uma aproximação do conceito polémico de Filosofia.
Será suficiente definirmos Filosofia pelos seus étimos? Podemos aceitar a explicação etimológica como um primeiro passo, mas é obvio que este conceito inicial tem que ser preenchido, enriquecido com outros conceitos. Ora, como procedemos nos quando, por exemplo, queremos definir as diferentes ciências do nosso curriculum? Naturalmente recorremos aos objectos, às temáticas sobre as quais se debruçam, aos seus campos de actuação, as fronteiras que as delimitam e aos métodos, ou seja, aos modos como se processam esses estudos, aos passos, às operações a que estão sujeitas. O objecto e o método são itens possíveis, são índices taxonómicos para a classificação de uma ciência. Será viável utilizá-los para esclarecer o conceito de Filosofia?
Isabel Marnoto e Manuel Garrão; Filosofia 10º ano; Texto Editora, Lisboa; 1986, p. 5
Abordagem do conceito "Filosofia» pelo seu objecto – a vocação de totalidade inerente à Filosofia
Os problemas a que alude o texto de Marnoto e Garrão, e que se colocam perante a tentativa de definição de Filosofia pelo seu objecto, são claramente expostos no texto que se segue.
O filósofo, pois, de modo diferente de qualquer outro cientista, embarca no desconhecido como tal. O mais ou menos conhecido é partícula, porção, esquirola do universo. O filósofo situa-se perante o seu objecto numa atitude diferente de qualquer outro conhecedor; o filósofo ignora qual é o seu objecto e dele sabe somente: primeiro, que não é nenhum dos restantes objectos; segundo, que é um objecto integral, que é o autêntico todo, o que não deixa nada de fora e, por isso, o único que basta... Portanto, o Universo é o que radicalmente não sabemos, o que absolutamente ignoramos no seu conteúdo positivo. (…)
Dizia eu que o matemático ou o físico começam por delimitar o seu objecto, por defini-lo, e esta definição do numérico, do conjunto do material contém os atributos mais essenciais do assunto. Começam, pois, as ciências particulares, separando, demarcando o seu problema; e fazendo assim, aparenta saber ou crer de antemão o mais importante. Posteriormente, a sua tarefa reduz-se a investigar a estrutura interior do seu objecto, o seu fino tecido íntimo, poderíamos até dizer a sua histologia. Mas quando o filósofo parte para a pesquisa de tudo quanto há e aceita um problema radical, um problema sem limites, um problema absoluto do que ele busca - que é o universo – não sabe nada. (...)
De modo que não sé o problema filosófico é ilimitado em extensão, dado que abarca tudo e não tem limites, mas também em intensidade problemática. Não somente é o problema do absoluto, mas é absolutamente um problema. Quando, pelo contrário, dizemos que as ciências particulares tratam de um problema relativo ou parcial, não só sugerimos que se ocupam exclusivamente de um bocado de universo e nada mais, mas que esse problema mesmo se apoia em dados que se dão por sabidos e resolvidos, portanto, que somente a meias é um problema.
José Ortega Y Gasset; O que é a Filosofia?. Edições Cotovia Lisboa, 1 994; pp. 47, 59
Fig: José Ortega y Gasset (1883-1955) |
Neste excerto, José Ortega Y Gasset, filósofo espanhol do século XX, admite que a Filosofia tem um objecto próprio «que não é nenhum dos restantes objectos», pois «é o objecto integral, o autêntico todo, o que não deixa nada de fora». A partir daqui Ortega y Gasset levanta um grande problema epistemológico: a dificuldade de conhecer e de caracterizar esse todo.
As (restantes) ciências têm como objecto de estudo uma parte, uma determinada área da realidade material ou imaterial; elas são, por isso, tematicamente reduzidas. Deste facto resulta a possibilidade de as definir com relativa facilidade, bastando indicar as características suficientes dos seus objectos para as identificar.
A Filosofia, pelo contrário, procura compreender a totalidade do real, material e imaterial; procura compreender o universo no seu todo, isto é, a totalidade do universo. Sendo assim, qualquer definição da Filosofia seria empobrecedora do próprio conceito de Filosofia, dado que em seu nome «muitas questões ficariam definitivamente escamoteadas». Correr-se-ia o risco de a restringir apenas ao seu objecto, ao seu método ou finalidade dos seus conhecimentos.
Esse todo, que é o objecto da Filosofia, não é uma mera soma das partes mas sim algo integralmente organizado, estruturado. Por isso é que se pode filosofar a partir de qualquer objecto, fenómeno ou facto, uma vez que qualquer que este seja é no todo onde encontra o seu lugar e o seu fundamento último que, no final das contas é o fundamento primeiro.
Abordagem do conceito «Filosofia» pelo seu método – a reflexão critica
Os filósofos são tão livres como quaisquer outras pessoas para empregar qualquer método na busca da verdade. Não há método peculiar em Filosofia. (...) Contudo, estou disposto a admitir que existe um método ao qual se poderia chamar «método da Filosofia». Mas ele não é característico unicamente da Filosofia. É antes o método de toda a discussão racional e, portanto, tanto das ciências naturais como da Filosofia.
O método a que me refiro consiste em enunciar os problemas com clareza e examinar com espírito critico as diversas soluções propostas. Sublinhei as expressões «discussão racional» e «com espírito critico» a fim de realçar a identificação que estabeleci entre a atitude racional e a atitude critica.
Cada vez que tentamos dar soluções a um problema devemos tentar, tão rigorosamente quanto possível, superá-las em vez de as defender. É disto que se trata. Poucos de nos observam este preceito, mas, felizmente, (...) Portanto, esta critica só será há ainda quem seja capaz de fazer uma critica se nós não conseguirmos fazê-la. (…) fecunda na condição de formularmos os problemas tão claramente quanto possível e de apresentarmos a nossa solução sob forma suficientemente definida: uma forma que permita a discussão critica (…).
Pouco importam os métodos que possa utilizar um filósofo (ou quem quer que seja) desde que apresente um problema interessante e se empenhe seriamente em resolvê-lo. Dentre os numerosos métodos que ele pode utilizar — naturalmente sempre dependentes do problema em questão – um parece-me digno de ser mencionado.
Consiste, muito simplesmente, em tentar descobrir o que os outros pensaram e disseram a propósito desse problema, porque é que se debruçaram sobre esse assunto, como o formularam, como o tentaram resolver. Isto parece-me importante porque é um elemento do método geral da discussão racional.»
Karl Raimund Popper; «La Logique de la découverte scientifique» in Introdução Filosofia: Pensar e Saber 10º ano; Texto Editora, 3ª edição Lisboa; 1995; p. 124.
A partir do pensamento de Popper pode deduzir-se que a Filosofia é uma forma de raciocinar que não coincide estritamente com o raciocínio e as deduções da Matemática, por exemplo.
A Filosofia tem uma atitude própria, um estilo característico que é a reflexibilidade.
A palavra reflexão, como atitude peculiar da Filosofia, quer dizer voltar a pensar no que já se pensou ou no que já se viu. Reflexão designa, portanto, um segundo momento que é mais intenso que o primeiro. Reflectir significa, então, cair de novo na conta de alguma coisa, tomar consciência de algo, ou melhor, tomar consciência da realidade que se vive, das circunstâncias que envolvem a Vida.
Fig. 9: Karl Raimund Popper (1902-1994) |
Bibliografia
CHAMBISSE, Ernesto Daniel; COSSA, José Francisco. Fil11 - Filosofia 11ª Classe. 2ª Edição. Texto Editores, Maputo, 2017.
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