A evolução da historiografia - o iluminismo, o romantismo e a historiografia racionalista

 A evolução da historiografia

A evolução dos séculos XV e XVI favoreceu o surgimento de um pensamento humanista, que defendendo o livre arbítrio, o valor da experiência e o desejo de glória individual, conduziu à História humanista, reduzindo o papel de Deus. O Homem ir-se-ia, assim, sentindo cada vez mais o construtor e responsável do processo histórico.
O pensamento humanista deu também lugar à ideia da relatividade das coisas, e a experiência passou a ser o critério de verdade.

Assim, desenvolveu-se uma nova consciência do mundo e da Vida, aliada å idealização da Antiguidade, com tentativas de secularização da História.
Nesta altura, escrever História já não era trabalho dos monges, mas sim dos poetas, literatos, diplomatas, que abordavam criticamente o passado nacional ou urbano.
A temática histórica alargou-se, embora os aspectos políticos continuassem com maior expressão.

Para além de mudar o objecto, os humanistas substituíram a crónica medieval pelos anais, destacando-se a biografia como principal forma de exposição histórica.

Além da História humanista, desenvolveu-se também uma História chamada «exemplar», cuja principal preocupação era servir determinada ideologia (normalmente a do poder), podendo até sacrificar a verdade para conseguir tal fim.

O Renascimento do século XII consistiu num conjunto de transformações culturais, políticas, sociais e económicas ocorridas nos povos da Europa ocidental.
Nessa época ocorreram eventos de grande repercussão: a renovação da Vida urbana, apos um longo período de Vida rural, girando em torno dos castelos e mosteiros; o movimento das Cruzadas, a restauração do comércio, a emergência de um novo grupo social (os burgueses) e, sobretudo, o renascimento cultural com um forte matiz cientifico-filosófico, que preparou o caminho para o renascimento italiano, eminentemente literário e artístico.

A nível metodológico, a Historia renascentista deu inicio à ordenação metódica das fontes, graças a Flávio Biondo (1392-1463) que começou a reunir e a comparar as fontes com algum sentido critico, a Calchi, pioneiro no uso de documentos e inscrições, a Lorenzo Valla (1407-1457), o primeiro a defender a critica filológica das fontes, e a Vincenzo Giustiniani (1516 -1582) que introduziu a critica histórica objectiva submetendo todos os dados da tradição à critica da sua possibilidade de aplicação prática.

Representantes da História humanista

Nicolau Maquiavel (1469-1527): defendeu uma nova concepção de Estado: o Estado temporal, soberano, independente da igreja, centralizado e único.
Inspirado na sociedade quatrocentista, na qual a burguesia aspirava à formação de mercados nacionais, política e economicamente integrados por forma a assegurar a livre circulação dos seus produtos, Maquiavel defende que o regime republicano com eleição de dirigentes é o ideal do Estado.
Nicolau Maqiavel

Nas suas obras Discorsi sopra la prima deca de Tito Lívio e II Príncipe Maquiavel adopta já uma atitude científica, procurando explicar os fenómenos sociais que descreve pela intervenção de factores naturais como o clima, a natureza humana, etc.

Lorenzo Valla (1407-1457): escreveu De falso credita et emeritita Constantine, marcando o surgimento de um dos maiores instrumentos de critica histórica: a filologia humanística (comparação de estilos documentais, erros de tradução, etc.).

Francis Bacon (1561-1626): defendeu a superioridade dos tempos em que viveu, em relação aos antigos, e a ciência experimental sobre as concepções teóricas do passado. Para ele, as ciências devem ser renovadas e colocadas ao serviço do progresso da humanidade através das leis da Natureza.

Jean Bodin (1530-1569): defendeu que a História deve ser uma espécie de tábua da verdade e dos acontecimentos; e que quem a ela se dedica não deve começar pela História de Deus, mas pela dos Homens. Defendia, igualmente, a influência do clima sobre a natureza física e psíquica dos Homens.

Fernão Lopes (1380-1459): escreveu A crónica de D. João I, na qual está patente a defesa da independência do historiador perante as autoridades e o sentido da sua responsabilidade perante o povo. Segundo Fernão Lopes, o motor da História é a sociedade no seu conjunto ou, mais propriamente, o povo.

Nalguns casos, principalmente quando os reis tratavam a nação com equidistância entre os burgueses e a nobreza, o historiador, reflectindo em certa medida a ideologia oficial, esforçava-se por analisar os problemas e os homens com isenção e objectividade.

Portanto, uma das maiores conquistas da História do século XV foi a formulação da regra de ouro da História, a de que aquele que escreve História de acontecimentos deve conhecer e encadear os factos, as datas, os projectos e os resultados.

Os séculos XVII-XVIII

A partir de meados do século XVII o ambiente seria ainda de transição do Feudalismo ao Capitalismo, mas a luta entre regimes era agora claramente favorável aos burgueses, embora não na mesma dimensão em todos os países da Europa. A Inglaterra adiantou-se, fazendo emergir o Capitalismo Industrial, enquanto a França se destacava no âmbito da consciência revolucionária, com os antagonismos entre a burguesia e a aristocracia.

O século XVII seria também marcado pela constituição de impérios coloniais pelos holandeses, franceses e ingleses, que já detinham a supremacia nos mares, depois de suplantarem os portugueses e os espanhóis.

Neste período, dar-se-ia também uma grande evolução material, com o aparecimento dos correios e de vias de comunicação organizadas, de arquivos públicos, etc., bem como uma evolução cientifico-técnica, com a formulação da dúvida metódica, a exaltação do valor da experiência na construção da ciência e a afirmação do método científico.

O iluminismo

Neste período de ascensão da burguesia, as ideias burguesas iam-se impondo. Emergia, então, um pensamento novo, oposto à ideologia medieval dominante e que pretendia tomar como critério de verdade apenas a razão.

Sob esta visão, o Homem recusava a menoridade e procurava acreditar naquilo que lhe é dado entender, no seu próprio raciocínio. É o iluminismo baseado na razão esclarecida.

A nível da religião, o iluminismo implantou o deísmo, teoria em que se afirma a crença na existência de Deus, mas se questiona a revelação, recusando os dogmas. O deísmo defendia que Deus criou o Homem livre e concedeu-lhe autonomia plena dotando-o de razão para poder superar todas as dificuldades, ou seja, já não intervindo na sua Vida particular ou comunitária.

Os Homens do século XVIII recusavam os dogmas. Não eram cristãos e, em lugar de acreditarem no direito divino, acreditavam no direito natural.
Para o iluminismo, a razão era o maior critério de valor, para a religião, a filosofia, as ciências, o estado, o direito e a economia.

Portanto, nos séculos XVII e XVIII as ciências iriam evoluir sob influência do iluminismo, questionando a tradição e substituindo, como critério de verdade, o saber livresco pelo da experiência sensorial. Valorizava-se o Homem livre ou em processo de libertação dos dogmas e da veneração dos antigos.

Entretanto, a evidência sensorial, como critério de verdade, é mais aplicável as ciências naturais e menos as ciências humanas. Acompanhando a evolução nas ciências naturais, Descartes propôs para as ciências sociais, como critério de verdade, a evidência racional, que consistia num longo trabalho critico, através de sucessivas análises e sínteses, acompanhadas de uma atitude de dúvida metódica.
Surgia assim o método critico de investigação, a base da História científica.

A historiografia racionalista

Tendo como fundo o iluminismo, desenvolveu-se a partir do século XVII uma História racionalista.

A História deixava de interpretar os fenómenos históricos apenas no seu aspecto dogmático, admitindo a intervenção do Homem no processo histórico, embora continuasse a defender a origem divina do poder. Por seu turno, os burgueses tentavam fazer uma História dirigida contra a igreja e que defendesse a origem popular do poder.

No campo metodológico iniciou-se um tratamento mais cuidado e profundo das ciências auxiliares, nomeadamente a diplomática e a paleografia. Com os franceses, a construção histórica começaria com a investigação dos factos, sua classificação por épocas e temas, a critica filológica e a organização em repertórios ou dicionários.

Já no século XVIII a temática histórica alargou-se, passando a abarcar as grandes linhas de evolução da sociedade (política, económica, cultural, etc.), com o surgimento de uma História da civilização material. A História deixava de ser limitada ao campo político-militar.
A nível metodológico, a História do século XVIII evoluiu rumo ä critica minuciosa para o apuramento da autenticidade, veracidade e exactidão das fontes. A curiosidade e a dúvida passavam então a ser os maiores impulsionadores da busca do conhecimento histórico. Pretendia-se uma narrativa histórica racional e objectiva, que recusasse o secundário e o supérfluo.

A função da História também se alterou deixando a História de servir as pessoas (importantes/poderosas) individualmente para passar a servir a burguesia, como classe, e os seus ideais sociais e políticos.

Representantes da História racionalista

Charles-Louis de Secondat (conhecido por Montesquieu) (1689-1755): preocupou-se com o estudo da Filosofia política que tentou explicar com base num determinismo científico, prestando particular atenção as grandes correntes sociais. Uma das suas obras mais importantes, O Espírito das Leis constituiu um grandioso contributo para o desenvolvimento da ciência jurídica.
François-Marie Arouet (conhecido por Voltaire) (1694-1778): inaugurou uma História verdadeiramente humana, debruçando-se sobre política, economia, finanças, religião, aspectos demográficos, etc. Não obstante a sua narrativa, nem sempre é isenta, incluindo, por vezes, aspectos secundários, mais pitorescos do que úteis. Por outro lado, tem uma filosofia histórica determinista e pessimista.
M. J. Antoine Nicolas de Caritat (conhecido por Condorcet) (1743-1794): defendeu uma História global e cosmopolita. Ele foi, com A.R. Jaques Turgot, um dos precursores do Positivismo.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): é contra os valores tradicionais católico-feudais e favorável à valorização da sensibilidade e da personalidade livre e natural do Homem, contribuindo, assim, para uma compreensão profunda da realidade histórica.

A historiografia dos séculos XIX e XX

A historiografia do século
O século XIX ficou marcado como aquele em que a História adquiriu o real estatuto de ciência, na acepção actual do termo. Vejamos, então, o contexto histórico que favoreceu essa evolução.

Na segunda metade do século XVIII, assistiu-se na Europa, a dois grandes acontecimentos – a Revolução Industrial e a Revolução Francesa -, com repercussões na Vida política, económica, sociocultural e ideológica.

Em síntese, as transformações do final do século XVIII e princípio do século XIX significaram o estabelecimento definitivo do Capitalismo. Com efeito, a Revolução Francesa pós fim ao Absolutismo e levou à implantação do Liberalismo, enquanto a Revolução Industrial, além do aumento da produção, conduziu à afirmação de duas novas classes sociais (a burguesia e o proletariado), agudizando-se os conflitos sociais.

A nível do pensamento, a euforia do princípio do século levou ao surgimento de várias correntes, nomeadamente o Romantismo, o Positivismo, o Historicismo e o Marxismo.

O Romantismo

Os acontecimentos ligados Revolução Francesa alimentaram as mais diversas reacções entre as diferentes classes sociais. De facto, a queda da Bastilha, a nacionalização dos bens da igreja e da nobreza, a abolição dos direitos feudais, as execuções do rei, entre outros acontecimentos, despertaram emoções políticas que favoreceram o Romantismo.
O Romantismo, assente na ideia da liberdade, teve as suas raízes no século XVIII, quando Jean-Jacques Rousseau defendeu a ideia do «bom selvagem», que vive de acordo com os instintos, iniciando, então, a rejeição de tudo quanto fosse premeditado, feito segundo formulas pré-concebidas.
O Romantismo desenvolveu-se em três direcções, de acordo com as principais tendências face Revolução Francesa:
  • Romantismo Conservador: defendido pelos aristocratas, as classes privilegiadas antes da Revolução Francesa e que se opunham Revolução, que consideravam um retrocesso.
  • Romantismo Liberal: defendido pela burguesia, a classe mais beneficiada com a Revolução e que considerava que a revolução alcançou os objectivos.
  • Romantismo Socialista ou Socialismo Utópico: defendido pelos sans-culottes (as classes mais desfavorecidas), os que foram «carne para canhão» durante a revolução, mas não obtiveram benefícios com a mesma. Para estes, a revolução devia prosseguir até se alcançar a justiça e a igualdade, princípios que nortearam a revolução.

Evolução da historiografia

Sob influência do Romantismo, a História registaria na primeira metade do século XIX várias alterações, nomeadamente:
  • O alargamento da investigação histórica: o passado, em especial a Idade Média, passa a estar no centro das atenções dos historiadores.
  • A alteração do objecto da História: além dos factos políticos e individuais, a História passa a interessar-se pelos factos ideológicos e mentais bem como pelas sociedades e suas instituições e, ainda, pelos diversos povos e civilizações e respectivos costumes.
  • A adopção do método científico: que defende uma cuidadosa observação dos factos e só fazendo generalizações lentamente à medida que os factos vão sendo conhecidos.

Os historiadores românticos

François Guizot (1787-1874): foi defensor de um novo conceito de facto histórico que não assentasse apenas no acontecimento, mas também na relação entre os acontecimentos; ou seja, o facto histórico não apenas como facto político, mas também como facto da civilização.
Augustin Thierry (1798-1874): foi defensor de uma História das massas e não apenas dos grandes homens; revelava, porém, fraco rigor na critica as fontes.
Jules Michelet (1799-1875): foi precursor da História total, que procurava debruçar sobre todos os aspectos da Vida da sociedade. Recorria a numerosas fontes para a reconstituição do passado, mas por vezes perdia-se no imaginário e supérfluo e revelava parcialidade política.
Alexandre Herculano (1810-1877): foi o maior expoente da historiografia portuguesa, contemporâneo e seguidor de Guizot e Thierry. Na sua obra histórica deu grande valor ao devir das sociedades, ao povo trabalhador e às origens da burguesia.


Bibliografia
SUMBANE, Salvador Agostinho. H11 - História 11ª Classe. 2ª Edição. Texto Editores, Maputo, 2017.

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