Textos literários: O Texto Lírico

Textos literários: O Texto Lírico

Os valores de uma sociedade são, muitas vezes, veiculados por meio artístico.

Os cantos poéticos, transmitem sentimentos do cantor, que são, frequentemente, o sentimento de um grupo social.

Na presente unidade didáctica irás compreender a evolução do texto poético, em língua portuguesa, desde a Idade Média até à época contemporânea, com particular incidência na evolução da literatura africana.

1. Textos líricos

O termo «lírica» provém da palavra «lira», nome de um instrumento antigo de cordas cujo som é muito agradável. O soar da lira era, normalmente, acompanhado por versos cantados, que, com a passagem do tempo, tomaram o nome do instrumento. Os versos expressavam o estado sentimental de quem os cantava. Assim, textos líricos passaram a ser aqueles em que o sujeito enunciador expressa as suas emoções, os seus sentimentos face a si mesmo ou ao mundo.

2. Oratura — génese da literatura portuguesa

A poesia trovadoresca

A primeira grande manifestação da literatura portuguesa é constituída pela poesia dos trovadores, escrita em galego-português, durante a Idade Média, entre o século XII e meados do século XIV.

A poesia medieval foi composta para ser cantada, pelo que nela predominam o refrão e o paralelismo. O amor é o tema dominante nos poemas dos trovadores (poetas e compositores líricos de cantigas trovadorescas). Porém, por vezes eram versados assuntos muito diferentes, como a sátira. Surgiram, deste modo, textos poéticos de natureza lírica (cantigas de amigo e cantigas de amor) e de natureza satírica (cantigas de escárnio e cantigas de maldizer).

A sátira na poesia trovadoresca: cantigas de esc6rnio e maldizer

A sátira na poesia dos trovadores ou era severamente mordaz ou era ir6nica. Nas cantigas de escárnio, a critica era ambígua, irônica. As cantigas de maldizer criticavam directamente, sem ambiguidade, chegando a citar os nomes dos sujeitos satirizados. O paralelismo era muitas vezes imperfeito.

Cantiga A

Roi Queimado morreu con amor

En seus cantares, par Sancta Maria,

Por üa dona que gran ben queria;

E, por se meter por mais trobador,

Por que lhe ela non quis ben fazer,

Feze-s' el en seus cantares morrer,

Mais ressurgiu depois ao tercer dia!

Pero Garcia Burgalés (excerto)

 

Cantiga B

Ai, dona fea, foste-vos queixar

Que nunca vos louv'em [o] meu cantar;

Mas ora quero fazer um cantar

En que vos Ioarei toda via;

E vedes como vos quero loar:

Dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus me perdon,

Pois avedes [a] tan gran coraçon

Que vos loe, en esta razon

Vos quero já loar toda via;

E vedes qual será a loaçon:

Dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei

Em meu trobar, pero muito trobei;

Mais ora já un bon cantar farei,

En que vos loarei toda via;

E direi-vos como vos loarei:

Dona fea, velha e sandia!

                       Joan Garcia de Guilhade

É difícil distinguir as cantigas de escárnio das de maldizer. No entanto, no segundo texto, a critica é indirecta; portanto, a cantiga é de escárnio. Ironicamente, o trovador promete a uma dama (que se foi queixar) que a louvaria nos seus versos; contudo, os versos do seu canto criticam-na: «Dona fea, velha e sandia!» No primeiro poema, o trovador diz mal de um outro trovador directamente, citando-lhe até o nome, «Roi Queimado», que morreu de amor por uma «dona» que não o amava, mas que ele tanto queria.

3. Oratura — génese da literatura moçambicana

Os cantos folclóricos

Na fase pré-colonial e de penetração mercantil, a cultura moçambicana já se caracterizava por importantes manifestações artísticas orais. Entre estas, destacam-se os cantos poéticos. Tal como a poesia galego-portuguesa, os cantares moçambicanos celebravam o amor, a dor, as alegrias das festas, a coragem das guerras e das caças. Alguns cantos também eram satíricos.

Grande parte dos cantos tradicionais documentados foi recolhida e traduzida por Henri Alexandre Junod, nos anos de 1800. Muitos cantos eram acompanhados de instrumentos musicais tradicionais.Junod conservou, por escrito, em pautas musicais, algumas destas melodias.

A sátira na poesia

Da grande diversidade de cantos poéticos tradicionais moçambicanos, é de realçar a poesia satírica de msaho dos Chopes, altamente mordaz, de protesto contra os males sociais perpetrados pelos colonos portugueses e seus colaboradores. Havia muito que o colonizado demonstrava um sentimento patriótico e de revolta; apenas lhe faltavam meios para a concretização da liberdade.

Canto A

Procuramos o milhafre que estå no céu...

Quem é o milhafre?

E Mozila! É Mozila!

O lago transborda

Vamos saber

Quem é o milhafre

Que estå no céu...

É Mozila!

                                                    Canto ronga

in Henri Junod, Cantos e Contos dos Rongas

 

Canto B

«É tempo de pagar impostos aos portugueses

Os portugueses que comem ovos

E galinhas.

Troca-me esta libra inglesa.»

«Oh... oh, ouvi as ordens,

Ouvi as ordens dos portugueses.

Oh... oh, ouvi as ordens,

Ouvi as ordens dos portugueses.

Homens! Os portugueses dizem: paga a tua libra.

Homens! Os portugueses dizem: paga a tua libra.

Mas que maravilha, pai!

Onde hei-de descobrir a libra?

Oh... oh, ouvi as ordens dos portugueses.»

«Cantai oh... oh... oh, vinde ver o Mzeno

Cantai oh... oh... oh, vinde ver o Mzeno

Aqui há mistério, os portugueses batem-nos nas mãos,

A nós e às mulheres

Cantai oh... oh... oh, vinde ver o Mzeno.»

                                                      Poesia de msaho

in O. Mendes, Sobre Literatura Moçambicana, 1980

O Canto A pode ter uma mensagem irônica, tendo em consideração que os populares tinham por obrigação pagar um imposto aos responsáveis máximos, neste caso Mozila, antigo imperador de Gaza, pai de Ngungunhana. Aquele era um canto entoado por mulheres que levavam ao imperador parte dos seus cultivos. O termo «milhafre» pode ter uma conotação negativa, uma vez que se trata de uma ave de rapina, que rouba bens alheios. Nesta linha de leitura, teríamos uma canção de escárnio na oratura moçambicana.

O Canto B também se refere ao imposto, mas, desta feita, a sátira é directa. O sujeito e as atitudes satirizadas estão explícitos: tempo de pagar impostos aos portugueses».

 

Bibliografia

MACIE, Filipe Virgílio. Pré-universitário – Português 11ª Classe. 1ª Edição. Longman Moçambique, Maputo, 2009.

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