Noção e objecto da ontologia (ou metafisica geral)

4.1. Noção e objecto da ontologia (ou metafisica geral)

Etimologicamente, a palavra «ontologia» deriva de dois termos gregos: onto, que significa «ser», «ente», «individuo», e logia, que quer dizer «tratado», a saber, «estudo», «doutrina», «investigação».
      Neste sentido, a ontologia como metafisica geral é a parte da Filosofia que se ocupa dos problemas relativos ao ser enquanto ser, isto é, do ser na sua generalidade, e das qualidades ou propriedades que pertencem ao ser enquanto tal. Portanto, a ontologia como metafisica geral é a filosofia do ser enquanto ser e não tornado nas suas partes; é o estudo do ser nas suas variadas formas.
       O termo «ontologia» foi cunhado por Aristóteles no seu livro Metafísica IV, I.
     O que é um ser? Que qualidades podemos encontrar no ser? Por que princípios se rege o ser?
     Destas e de outras perguntas similares se ocupa a ontologia. Por isso, constitui objecto de estudo da ontologia o ser enquanto é, mas somente enquanto é e não enquanto é isto ou aquilo enquanto ser determinado. Neste sentido, o objecto da ontologia é muito abstracto e de máxima extensão, dado que abrange tudo quanto é, e de compreensão mínima, visto que se abstrai de qualquer propriedade particularizante, Portanto, diferentemente das demais ciências que se dedicam ao estudo das coisas que são isto ou aquilo, que têm esta ou aquela característica, esta ou aquela atitude comportamental, a ontologia estuda as coisas simplesmente enquanto são. E porque toda a realidade, encarada como ser, pode constituir objecto de da ontologia, conclui-se que o seu objecto é a totalidade ôntica.

4.1.1. O ser, o que é?

       Ser é tudo quanto existe, independentemente do modo como é. Trata-se, pois, de uma noção quantitativamente genérica e complexa e qualitativamente menos compreensiva. Mas porquê?
      Por um lado, porque o conceito «ser» é um género suprema, dai que não exista um outro conceito que seja o seu género próximo, isto é, um conceito em que este se posso incluir como elemento e ou espécie E porque é um conceito que escapa a uma definição rigorosa, visto não possuir uma característica peculiar, a que os lógicos chamam diferença especifica, que não seja o ser.

4.1.2. As categorias do ser: substância e acidente

     Quando falamos das categorias do ser, referimo-nos grandes divisões que o mesmo comporta.
      De acordo com Aristóteles, o grande metafisico, existem dez categorias do ser, sendo que a primeira é a sustância e as restantes nove são acidentes.
      A substância, ou modo de ser substancial, pode ser entendida como «aquilo que é em si e por si e não em outra coisa»; é o substrato a partir do qual encontramos as qualidades ou os acidentes. E o que permanece como algo subsistente, que tem um ser próprio e que, por isso, não pode ser afirmado a propósito de um sujeito nem se encontra nele. São todas as coisas concretas e individuais: o homem, o cão, o lápis, o caderno, o Pão.
      Aristóteles distingue dais tipos de substâncias: a primeira e a segunda. Entende-se por substância primeira as coisas individualizadas, ou seja, os indivíduos na sua singularidade (este caderno, o João, o meu professor, a casa onde moro, a escola onde estudo, etc.) e a substância segunda, tudo quanto existe como pensamento (casa, escola, professor, caderno, homem, etc.). São conceitos que se traduzem em definições, ou seja, são as espécies e os géneros que nos permitem atribuir certas qualidades as coisas individualizadas, isto é, as substâncias primeiras (O João é um homem, aquela é a casa onde moro, etc.).
    Assim, conclui-se que a substância primeira se refere a indivíduos singulares e concretos e a substância segunda diz respeito às espécies e géneros singulares e abstractos.
Pelo contrário, acidente é tudo aquilo que ocorre ou acontece, aquilo que para ser necessita de se apoiar numa substância e, por isso, pode afirmar-se de um sujeito, ser substanciado, uma vez que constitui a sua característica.
O acidente só existe na substância; é o predicado da substância, quer dizer, não existe em si e por si. A sua existência está dependente de um outro ser no qual se pode consubstanciar o seu ser.
      Se a substância é o que permanece no individuo, mesmo depois de este sofrer algumas vicissitudes e intempéries, o acidente é o que está sujeito a mudanças no individuo, é «aquilo que sucede ou acontece» no individuo na sua categoria de substância. É o que se diz da substância primeira, ou seja, do individuo na sua singularidade. Em suma, o acidente é o predicado de uma determinada substância, e não o contrário. Por isso, posso dizer que «a minha escola é linda», «Mataka é inteligente» e «o meu automóvel é veloz», e não o contrário.
      Assim, distinguem-se dez categorias de ser, sendo que a primeira é a substância; as restantes nove constituem a classe dos acidentes. Quais são esses acidentes?
  • Qualidade – a forma ou determinação da substância (por exemplo, professor, inteligente, simpático, etc.)
  • Quantidade – a determinação da substância que permite atribui-la a partes distintas das outras (por exemplo, grande, pequeno, 1,64 m de altura, 12 g, etc.).
  • Relação – a ligação ou referência que a substância, ou até o acidente, estabelece com outra substância ou acidente (por exemplo, pai, filho, primo, chefe, mestre, etc.).
  • Tempo – momento, ou ocasião, apropriado ou disponível para que uma coisa se realize, ou seja, curso de eventos extrínsecos que dura um determinado período (por exemplo, «Moçambique tornou-se independente no dia 25 de Junho de 1975», de manhã, ao meio-dia, tarde, etc.).
  • Lugar – espaço que um corpo substanciado ocupa em relação a outros corpos (por exemplo, na escola, no mercado, no cinema, próximo da padaria, em casa, na sala, etc.).
  • Acção – o que a substância faz usando as suas faculdades ou poderes causando efeito em si mesma ou noutros corpos circundados por uma substância (por exemplo, dialogar, conduzir um automóvel, bater em alguém, etc.).
  • Estado – luxo, pompa, fausto, ostentação, magnificência, ou seja, conjunto de bens ou instrumentos que, por sua habilidade, complementam a natureza da substância, permitindo a preservação e conservação da mesma ou de outras substâncias corpóreas.
  • Posição – lugar ou postura relativa ocupada pela substância ou parte dela face a outras (por exemplo, sentado ler um romance, de pé a apreciar a paisagem, deitado a ouvir música, etc.).
  • Paixão – sentimento, ou emoção, desencadeado por um agente que, ao sobrepor-se lucidez e razão, provoca sofrimento numa determinada substância (por exempla, a perda de um ente querido, a condenação de Sócrates, a crucificação de Cristo, o ferimento, etc.).

Vamos recordar...
— Ontologia ou metafisica geral é um ramo da Filosofia que se ocupa da questão do ser enquanto ser.
— Ser é tudo quanto há, ou seja, tudo quanto existe, independentemente do modo como é.
— A substância é aquilo que é em por si, e não em outra coisa; e o acidente é aquilo que ocorre na substância.
— A substância e os acidentes são as dez categorias aristotélicas do ser correlacionadas.

4.1.3. Potência e acto

    Aristóteles recorre a duas noções fundamentais para explicar o dinamismo do ser: potência e acto.
      Entende-se por potência a possibilidade que uma matéria tem de vir a ser algo em acto; é o carácter dinâmico da matéria que lhe permite possuir um determinado modo de ser e que lhe confere a capacidade do devir. E assim que, por exempla, a farinha de trigo é, em potência, um pão ou um bolo, ou seja, possui a capacidade de vir a ser algo que antes não era. Da mesma forma, o algodão que o camponês produz ainda não é um tecido, contudo possui em si a potência, isto é, a possibilidade de vir a ser um tecido, uns calções, umas calças, ou outra coisa. Se estou sentado a escrever, posso levantar-me e esticar os braços. Se sou aprendiz de filosofia, posso ou não vir a ser um filósofo.
     Se a potência é a capacidade que permite ao ser mudar de actualidade, ou seja, o carácter dinâmico do ser, o acto é «o que faz ser aquilo que é», é o ser real, é o que o determina. Por isso, dizer que uma coisa está em acto é o mesmo que dizer que tal coisa tem actualidade ou existência, ou seja, que passou da potencia de ser algo ao acto de ser, Por exemplo, a camisa do teu uniforme está em acto, isto é, existe actualmente, já não é aquele simples tecido que era antes de ser costurada pelo alfaiate.
     Potência e acto são dois conceitos correlativos, pois, enquanto a potência explica a multiplicidade e a mudança, o acto explica a unidade do ser; enquanto a potência explica aquilo que a matéria ainda não é, mas pode vir a ser, o acto explica a sua real existência, o que a matéria já é efectivamente.

Vamos recordar...
— A potência é a possibilidade que uma matéria tem de vir a ser algo em acto.
— O acto é «o que faz ser aquilo que é», é o ser real, é o que o determina.
— O acto explica a unidade do ser, enquanto é e a potência explica o que matéria pode vir a ser.

4.1.4. Essência e existência

       A essência e a existência são dois conceitos com significados ontológicos implicativos, tal como a substância e o acidente. Pois, para além da sua clara distinção, o conceito de essência é correlativo ao conceito de existência.
      Em A Metafisica, VII, Aristóteles escreve: «a essência o quo de uma coisa, isto é, não o que seja, mas aquilo que uma coisa é», ou seja, é o que é uma coisa, podendo caracterizá-la e distingui-la do que ela não e; é qualidade ou determinação sem a qual uma coisa não seria o que factualmente é. A essência é, portanto, a substância segunda, ou seja, tudo quanto existe como pensamento. A essência refere-se, neste sentido, as características fundamentais da substância.
      Ela não existe por si só, mas existe como pensamento. Se o conceito de essência é equivalente substância segunda, a existência é a substância primeira. Por conseguinte, é na existência que o ser se manifesta e se revela enquanto realidade.
       A existência é a actualização da essência; é a realidade, a substância em acto. Por isso, para Aristóteles, o filósofo grego, a substância pode ser entendida como a existência, porquanto nela residem todas as propriedades que determinam um ente (tudo o que é de maneira concreta, fáctica ou actual).
       A essência e a existência constituem dois princípios necessários e, ao mesmo tempo, complementares para a afirmação ou a constituição de qualquer ser, de tal forma é inconcebível um ser sem essência ou um ser sem existência. Consequentemente, pensar num caderno não é o mesmo que ver um caderno. O caderna como pensamento não passa de uma ideia ou essência.
       Já o caderno onde escrevo os meus apontamentos é algo existente, em acto. Portanto, existir significa «sair», «manifestar-se», «mostrar-se., e «revelar-se», c sai, manifesta-.se e mostra-se somente aquilo que possui uma determinada essência. Por isso, era frequente ouvir, entre os filósofos clássicos, que a essência nada é sem a existência e a existência não é sem a essência. Daqui emergem duas correntes filosóficas modernas: o essencialismo e o existencialismo.
      O essencialismo defende a primazia da essência sobre a existência – o ser define-se primeiramente e só depois se torna isto ou aquilo , enquanto o existencialismo defende a primazia da existência sobre a essência, ou seja, uma pessoa não tem qualquer natureza ou conjunto de escolhas predeterminadas, pois é sempre livre para fazer novas escolhas e constituir-se como uma pessoa diferente. O existencialismo, embora seja um tema antigo, teve o seu desenvolvimento, corno corrente na Europa, no período entre as duas grandes guerras mundiais, e as suas características fundamentais são as seguintes.
      A valorização do individuo como algo irredutível, e não como algo insignificante e reduzido sua totalidade. O que existe verdadeiramente é o individuo na sua singularidade, é o individuo singular, uno e irrepetível («existir» significa ser diferente). Por isso, no que diz respeito ao ser humano, «o homem primeiramente existe e só mais tarde se torna isto ou aquilo», ou seja, a existência precede a essência, como afirma Jean-Paul Sartre na sua obra O Ser e o Nada.
     A valorização da liberdade do homem enquanto ser situado no universo. Se a essência é o pensamento, a existência é a manifestação do ser, ou seja, a liberdade que se afirma no ser contra todas as limitações impostas pela natureza. Portanto, o exercício da liberdade, enquanto manifestação do ser, não deve ser limitado pela natureza humana. Como afirma Sartre:
  • «O homem está condenado a ser livre», isto é, o homem, enquanto manifestação do ser substanciado, ou seja, corpóreo, é livre de se tornar o que quiser, uma vez que a sua construção é algo de permanente e constante enquanto ser situado no mundo. Neste sentido, ser homem significa ser capaz de construir a sua personalidade medida que se vai buscando valores por si mesmo escolhidas e tomados como paradigmáticos.

4.1.5. A cadeia aristotélica de causas: Tomás de Aquino e as Cinco Vias

Se o ser é tudo quanto é, ou seja, tudo quanto existe e pode passar da potência ao acto e do imperfeito ao perfeito, há que procurar compreender esta força ou razão transformadora das coisas que confere um determinado modo de ser: a causa. A causa pode ser entendida como a condição da existência de qualquer coisa, ou seja, é tudo o que concorre para a produção de qualquer coisa. No entender de Aristóteles, os seres criados não têm a razão de ser em si mesmos e distingue quatro causas que concorrem para a produção de qualquer coisa:
  • Causa eficiente – condição do fenómeno que produz outro fenómeno, ou seja, aquilo que produz uma coisa; é o artífice que confere o ser que antes uma coisa não possuía (por exemplo, o carpinteiro que dá madeira, a matéria-prima, forma da carteira onde estás sentado).
  • Causa material – condição ou aquilo de que uma coisa é feita (para o caso da carteira onde estás sentado, a causa material seria a madeira).
  • Causa formal – a forma ou o aspecto que um determinado ser toma ou que é plasmado pelo seu criador (por exemplo, carteira rectangular, quadrada, etc.).
  • Causa final – o propósito ou o objectivo com que uma coisa é feita (no caso da tua carteira, seria apoiar-te, colocando o teu material escolar sobre ela, permitindo-te escrever ou ler).

Na Idade Média, o rema da causa voltou a ser actual e foi extensamente estudado, em especial por Tomás de Aquino, que retoma a doutrina aristotélica da causa, enquadrada agora no âmbito do pensamento escolástico. A Escolástica foi a corrente filosófica dominante na Idade Média, ensinada nas escolas da igreja, e que combinava doutrinas religiosas e assuntos teológicos com filosofia. Tomas de Aquino apresentou na sua mais famosa obra, Summa Theologiae (Suma Teológica), e enquadrado na temática da causa, que, para este pensador, é aquilo ao qual algo se segue necessariamente, as Cinco Vias, que também ficaram conhecidas como as provas da existência de Deus. São elas:
  • 1. O movimento do mundo só é explicável se existir um primeiro motor imóvel;
  • 2. A série de causas eficientes no mundo devem conduzir d uma causa sem causa;
  • 3. Os seres contingentes e corruptíveis devem depender de um ser necessário independente e incorruptível;
  • 4. Os diversos graus de realidade e bondade do mundo devem ser aproximações a um máximo de realidade e bondade subsistente;
  • 5. A teleologia normal de agentes não conscientes no universo implica a existência de um orientador universal inteligente.
Estas Cinco Vias foram consideradas bastante importantes na sua época, no contexto da reflexão filosófica-teológica, mas posteriormente foram consideradas teses falaciosas.

Vamos recordar...
– A essência é o quê de urna coisa, isto é, o que faz, com que uma coisa seja o que ela é, permitindo-lhe distinguir-se de outra.
– A existência é a essência em acto, ou seja, a realidade da sua essência.

4.1.6. A Metafísica e o fim último do Homem

     Uma das grandes questões que o Homem se vem colocando é a que diz respeito aos fins para os quais existe. Não há unanimidade sobre os fins para os quais o Homem foi criado. No entanto, analisando as abordagens feitas pelos filósofos, parece haver uma visão teleológica para a existência humana.
      Aristóteles, na obra Ética a Nicómaco, diz que toda a acção humana é feita em função de um fim. Esse fim é o bem. Para o filósofo, esse bem tem de ser soberano e o bem soberano é a felicidade. Portanto, ser feliz é o fim último da existência humana. A chave da felicidade compreende três realidades: prazer, ser cidadão livre e responsável e viver segundo a razão.
       Esta posição foi reiterada por Santo Agostinho, na época medieval. Para o hiponense, o Homem é chamado a ser feliz. Mas o que se entende por felicidade? A felicidade não consiste na busca incessante de bens materiais. Consiste, sim, na busca de um bem permanente — Deus. S. Tomás de Aquino reconhece igualmente que o Homem é o único ser que age em função de um fim.
      O facto de o Homem ser dono dos seus actos é o que o diferencia dos seres irracionais, razão por que só aquelas mesmas acções de que ele é senhor podem chamar-se humanas. Ora, é por ser dotado de razão e vontade que o Homem tem domínio sobre os seus actos, e a faculdade ou potência conjunta de razão e vontade é o que se chama livre arbítrio. Com efeito, «todas as acções que procedem de uma potencia são causadas por ela em razão de seu objecto» e o objecto da vontade não é senão o bem e o fim. «Logo, é necessário que todas as acções humanas tenham em vista um fim.» (A potência geradora das acções referidas é o Homem.)
      Dante atribui ao Homem dois fins últimoso fim sobrenatural (a salvação das almas individuais) e o fim natural (a felicidade terrena, com o atendimento das necessidades materiais e a formação das virtudes morais do homem no âmbito da pólis).
Para o pensador moçambicano Brazão Mazula, o homem tem de agir de acordo com a ética da felicidade. O modelo da ética da felicidade baseia-se no trabalho duro, na criatividade e na honestidade e não na acumulação ilícita de bens.


Bibliografia
GEQUE, Eduardo; BIRIATE, Manuel. Filosofia 12ª Classe – Pré-universitário. 1ª Edição. Longman Moçambique, Maputo, 2010.

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